- Está
chegando a hora. Preparada?
- Nunca
se está realmente preparado para os grandes acontecimentos, ou eles
perderiam seu valor.
- Você
está com medo.
- É
apenas ansiedade. Não está ansiosa também? Pelas consequências.
- É o
que me consola.
- Essa
modulação de timbre novamente...
- Não
posso evitar. Mas logo o tormento chegará ao fim.
- Você
irá se acostumar.
- Você
também.
-
Adeus.
-
Adeus.
~*~
Novamente,
O sonho.
O único
sonho que este ser se permite sonhar desde o dia em que sua centelha
ganhou consciência. Mais de uma vez pensei ter desvendado seu
significado; e mais de uma vez enganei-me.
O peso do
tempo e a reflexão me trouxeram a conclusão que nunca se tratou de
uma premonição relacionada a uma situação específica que
vivenciaria em minha existência. Não, esse sonho com ares de
despedida sempre foi a lembrança do meu destino cíclico.
Aprendendo
isso, pude relaxar e conviver com as experiências, júbilos e
decepções que vieram em decorrência deste destino.
Mas
também já estava previsto que eu me acostumaria. Entenderia a
importância de cada momento da vida – o momento de caos e o de
ordem, o de guerra e o de paz, e muitos outros.
Este é o
momento de contemplação.
Cessei de
contabilizar o acúmulo de dias e noites, preferindo a noção de
tempo através de eras. E já faz pelo menos duas que apenas observo
as consequências da descoberta de um tesouro ancestral e esquecido
pelos humanos.
Eu
confesso que esperava mais.
Os únicos
olhos que marejaram com sinceridade perante o retorno da lenda foram
os do homem que a desencravou da rocha impenetrável sob a forte
chuva de outono. Entretanto, a esperança que nasceu com esse
primeiro contato logo desmistificou-se.
É
difícil pensar no nascimento de uma nova era quando se está
encaixotada em um esquife de vidro, a vista de todos e ao mesmo tempo
totalmente invisível. Passivamente, observei o momento de
efervescência da multidão. Lunetas modificadas e outros objetos
incompreensíveis sendo apontados para todos os meus ângulos, rostos
curiosos, incrédulos, inquisitivos...
Nenhum
deles, entretanto, tão sensíveis como os do rapaz cujo destino foi
trazer-me para a luz novamente. Eu já sabia disso, o responsável
destinado a essa tarefa não pode ser uma pessoa ordinária.
Mas sinto
que esses são tempos de corações ainda mais duros e mentes ainda
mais embotadas do que as minhas selvagens vindas anteriores. Em pouco
tempo, apenas os passos ritmados do vigia quebram o silêncio de
quando em quando. Um ou outro rosto de cera passeia os olhos pela
sala e, quando muito, demora-se meio segundo na placa de bronze que
explica o que sou, de onde vim e o que represento.
Então
vira-se para a saída com a mesma expressão vazia, sem uma onda
sequer na superfície dos pensamentos.
Eu
aprendi a ser paciente e perseverante tendo minha mãe como exemplo.
Nesses períodos silenciosamente desesperadores, lembro-me dela em
sua posição de lótus, sorrindo serenamente de olhos fechados com
os cabelos balançando de leve na imperceptível correnteza. Havia
uma leve melodia que saía diretamente de seus pensamentos para o
exterior, fazendo os peixes e as ondas seguirem seu caminho embalados
por um suave ritmo.
Um ritmo
do qual não me recordo há muito tempo. A princípio parece um
triste fato, mas é uma das coisas que me mantém incorruptível. Não
fosse a agridoce esperança de ouvir novamente a canção que reside
no coração dos homens, o que seria de mim em dias como esses?
Mais uma
lua, mais uma cheia, mais uma estação. Só posso contar com a
certeza de que nada é eterno.
E quando
a roda gira mais forte, é como se todo o tempo de espera sumisse em
um sopro de esquecimento. Começa lentamente, mas é possível
perceber.
Uma das
paredes, outrora lotada de valiosos quadros, apareceu limpa como em
um piscar de olhos. Retirados um a um, lenta e diariamente, efetuaram
a mágica da paciência.
Junto com
os quadros sumidos de meu salão, surgiram passos apressados indo de
cômodo em cômodo fazendo o mesmo serviço. Sombras de estátuas
cobriam-me por alguns segundos antes de desaparecerem para sempre. O
som de rodas comprovava que os objetos maiores não seriam
esquecidos.
O
silêncio aumentava dia a dia, como se ganhasse vida. Lá fora,
entretanto, um ritmo suave ia gradualmente ganhando fôlego. A
impressão era de que a calmaria interna e o burburinho externo
competiam e ofendiam-se entre si, buscando cada um a supremacia
total.
Chega o
momento esperado em que os passos e as sombras dos vigias tornam-se
cada vez mais escassos e nem mesmo os poucos e apáticos humanos de
antes vagam pelos salões. Diferente do que acontece além dessas
paredes, onde um som que me é familiar começa a ressoar
infalivelmente.
A espera
está chegando ao fim ao mesmo tempo em que o espetáculo se inicia.
Os
gritos, explosões e o tremor da terra não causam-me nenhuma comoção
além da contagem regressiva que identifico. Essas grossas pilastras
estão com os instantes contados, o vidro que me cerceia já está
levemente trincado, as paredes nem mesmo contam como obstáculos para
os humanos e as máquinas maravilhosas lá fora. Eu vi a que ponto
chegaram ao longo dos séculos. Eu sei que sou apenas uma velharia
aos olhos deles e por isso ainda estou aqui. Mas é como deve ser, e
uma prova disso é que os dias vão passando cada vez mais rápido
como se o mundo tivesse pressa.
Ouço
passos ecoando fortemente pelo chão abandonado. A respiração
descompassada e os gritos esparsos mostram que obviamente é uma
perseguição. Três, quatro talvez? Logo chegarão aqui.
O
primeiro vulto aparece. Um homem alto em roupas de seu tempo, barba
malfeita e suor escorrendo pela face. Não importa época e
armamento, um guerreiro é inconfundível. Ele engatilha sua
cospe-fogo, infinitamente mais moderna do que a última que já vi, e
posta-se ao lado da porta, aguardando. Seja quem for o alvo da
emboscada, eu o verei primeiro.
Com a
respiração ainda mais desesperada que o primeiro, vejo mais um
homem se aproximar. Mais baixo e magro que o primeiro, olhos
transparecendo o pânico de quem não conhece tão bem o calor da
batalha. A mochila que carrega parece demais para seu físico. Um
escudeiro também é inconfundível, não importa quanto tempo passe.
Conforme
se aproxima, vejo um pequeno objeto voador mecânico atrás dele a
toda velocidade, e assim como a arma de há pouco, não remete a nada
que eu tenha conhecido até hoje. A esfera vermelha brilhante no
centro dele parece atiçar-se e a distância entre eles diminui, o
que provoca o grito do pobre homem perseguido que entra praticamente
deslizando no meu salão.
No
instante seguinte o guerreiro interpõe-se entre lobo e cordeiro,
descarregando uma saraivada de tiros no objeto. Não há barulho e
não vejo balas, apenas pequenas faíscas azuis saindo do alvo e
indicando as avarias. Com um último estalo ele cai ao chão, agora
imprestável.
Pelo
visto, aprimoraram a capacidade letal da eletricidade enquanto estive
fora... em vários sentidos.
-
Lance... - arfando, o escudeiro primeiramente descansa as mãos no
joelhos e alguns segundos depois suspira, sentando-se de uma vez e
conseguindo sorrir – Essa foi por pouco, hein!
- Vá pro
inferno, Arthur – o outro responde duramente, embora não grite –
Eu sempre tenho que livrar sua cabeça avoada, não sei como vai se
virar se um dia eu não estiver por perto.
- Eu
carrego suas tralhas, então estamos quites – ele tira o gorro
surrado e passa as mãos nos cabelos ruivos sujos. É pouco mais que
uma criança.
- Ei
Lance, olha só isso.
- É só
uma velharia, a mais inútil possível, pois nem se deram ao trabalho
de carregar pra longe daqui quando a guerra explodiu - ele responde,
sem desviar o rosto da tarefa de reabastecer sua arma. Mas o garoto
continua me encarando sem dar ouvidos ao desprezo dele.
- Queria
saber o que tá escrito. - ele passa os dedos sobre a placa de bronze
empoeirada, exalando curiosidade por cada poro. Eu sei o que isso
significa.
- Isso
não vai te ajudar com porcaria nenhuma. De qualquer forma, vamos
ficar aqui até a poeira baixar.
- Vamos
ficar para sempre, então. O que mais tem nesse mundo é poeira.
Sabe – ele se encosta no esquife, sem tirar os olhos de mim –
estamos em guerra desde antes de eu nascer. E sabe o pior? Aqui é o
lado fraco da corda. Não temos nem metade dos brinquedos que 'eles'
tem... mas continuamos lutando sem nos render... meio idiota, não é?
Só fazemos morrer.
- Ficou
maluco, Arthur? Tá falando sozinho?
- Acho
que ela deve estar aqui largada há muito tempo, só estou contando
as novidades dos últimos vinte anos.
- Ficou
maluco mesmo. E espere aí, por que ela?
- Bem, se
eu for imaginar uma companhia, prefiro que seja uma garota.
- Você
tem cada uma... - Lance segurou uma risada, balançando a cabeça
incredulamente – bem, sonhe com o que quiser enquanto temos um
teto, pois só vai piorar daqui pra frente.
O jovem
continuou falando sobre a época em que nascera. Escutei
pacientemente o desabafo a respeito da ascensão e queda de uma
civilização. Da guerra interminável. Das infalíveis e refinadas
máquinas de matar. Do céu cinza e do ar empesteado em fumaça. E
das atitudes que arruinaram o mundo antes de seu nascimento e o
fizeram lutar uma batalha que nunca escolhera.
Independente
dos aparatos, tempos caóticos também são inconfundíveis.
- Às
vezes acho que o melhor é simplesmente sentar e morrer, já que a
esperança acabou. - ele encosta-se ao meu esquife judiado, olhando
para o teto carcomido do salão com uma expressão desolada. Através
de seu relato, posso imaginar a forma da juventude desgastada dessa
época.
Mas esse
mundo é de vocês, e a esperança só termina quando vocês o
permitem.
- Fácil
falar. Mas eu estou cansado. - enfatizando a última palavra, o
garoto desconta um pouco das frustrações socando o vidro do esquife
com força mais que suficiente para trincá-lo totalmente e partir-se
em mil pedaços, da mesma forma que a velha placa de bronze. Agora
estou ao alcance das mãos dele e, diante disso, o fato de ter me
respondido instintivamente deve ter passado despercebido.
-
Arthur!!! Diabos, não faça tanto barulho... - Lance se aproxima
inquieto, mas silencia ao ver o olhar fixo do amigo na espada secular
e inútil. Ele observa Arthur como a um estranho nesse momento, e
assim o pareceria para qualquer um que o conhecesse.
- Ainda
está inteira... - ele sussurra, passando os dedos pela minha lâmina
e retirando uma parte da camada de poeira que a cobre. Sinto-me
aliviada. - Pra que será que serve isso...?
Antes que
Lance termine sua sentença sobre não carregar tranqueiras
extras, sinto as mãos dele me retirando do suporte bambo e quase
hesitando pelo peso. Ele logo entende a maneira certa de segurar-me,
e o faz com as duas mãos. Alguns tropeços iniciais e me vejo em pé
novamente... junto com o espírito do garoto que parece renovar-se
junto aos raios solares que passam pelas janelas. Nesse momento, a
canção volta a soar e morrer seria uma ideia estapafúrdia.
- É
bonita, não é, Lance? Se a paz tivesse uma forma, acho que seria
assim.
Confesso
que já se referiram a mim como um instrumento de paz, mas nunca
antes nessas condições puras. Diferente da inocência do garoto,
Lance me encara quase como se soubesse a verdade. Entretanto, não dá
sinais de querer livrar-se de mim.
- Não
sei se é bem pra isso que sua amiga serve.
O momento
é interrompido pelo som de passos rápidos e irregulares ecoando
pelos corredores e se aproximando do salão. Rapidamente e como
esperado de sua função, Lance prepara-se com a arma na mira, mas a
figura que surge parece frustrar suas expectativas. Por outro lado,
reconheço o visitante logo que ele adentra o recinto.
Um velho
senhor em farrapos, longa barba e rugas no rosto e mãos, muito
diferente do jovem de olhos azuis profundos que uma vez derramaram
lágrimas enquanto suas mãos me desencavavam da rocha e faziam meu
parto para este mundo. Agora sei que não esperei tanto tempo quanto
imaginei.
Mas para
ele e sua expectativa de vida humana, deve ter sido uma tortuosa
espera.
- Quem é
você? Algum refugiado? Apesar que parece mais um estrangeiro... - o
tom ameaçador de Lance não parece intimidá-lo nem interrompe seu
longo fitar na minha direção e na de Arthur.
- Sim,
sou um estrangeiro. Mas não sou um homem de armas, excetuando a
broca e a picareta – finalmente ele responde, torcendo um sorriso
enrugado – Mas isso foi há muito... e não temos tempo para
apresentações, pois logo esse lugar vai ruir.
Como se
cumprisse as palavras profeticamente, uma explosão externa fez a
construção tremer e pudemos ouvir o som de uma das salas adjacentes
desmoronando. Lance olhou uma última vez para o velho e voltou-se a
Arthur, puxando-o pelo ombro para a saída. Com o movimento brusco, o
garoto deixou que a minha ponta caísse pesadamente ao chão.
Essa
sensação não é nada gloriosa.
- Por
Deus, homem, seja mais cuidadoso! - erguendo a voz pela primeira vez,
o velho senhor aproximou-se e ajudou Arthur a levantar a lâmina,
confidenciando algo em voz baixa – Logo será capaz de levanta-la
sozinho.
- Como
assim...? O que ela é?
- Podemos
conversar enquanto andamos – Lance intrometeu-se entre o ancião e
Arthur, ainda visivelmente desconfiado mas sem intenções violentas
a vista. - Antes que acabemos soterrados...! Então você poderá
dizer o que sabe sobre... ela.
- ele aponta minha lâmina com um rápido movimento de cabeça,
disfarçando ao máximo a própria curiosidade.
O
guerreiro é teimoso e cauteloso, mas não um tolo.
Entretanto,
ele não tem escolha a não ser esperar que meu velho conhecido
apanhe o pedaço da placa de bronze gasta e empoeirada que leva meu
nome e a entregue ao jovem Arthur.
- Eu lhe
contarei sobre ela e as lendas que a cercaram por séculos a fio. E
também a meu respeito. - ele completou, retribuindo o olhar
analítico de Lance.
Arthur
apertou a placa entre os dedos da mão livre e a observou
carinhosamente. Nesse momento senti nascer em seu coração um
sorriso sincero do qual havia desistido há muito tempo, e o desejo
de entender o significado daquele nome.
- O que é
uma 'lenda'?
- Eu lhe
explicarei isso também.
Nos
aproximamos em silêncio da saída do velho museu que, assim como meu
descanso, não vai durar até o crepúsculo. Um mundo de caos aguarda
meu retorno e é terminado o momento de contemplação.
Pois o
Rei, o Guerreiro e o Sábio novamente cruzaram meu caminho, e a
canção de minha mãe voltou a sussurrar no coração dos homens.
FIM
Nossa filha adorei!!Estou estasiada com essa estória e te digo q vou Precisar da continuação!!\o/...hehehe...bjos da Mama *.* ;)
ResponderExcluirUhuuu...continuação...(^_^) "Arthur"..."Lancelot"..."Merlin"...e ESCALIBUR!Impossível não lembrar da música...hehehe o/o/ "Escalibur,escalibur..."
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