segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O Médico Real - VII

De uma infância solitária e fadada a cumprir expectativas, nasceu uma juventude empenhada a investir toda energia em um único objeto. Diferente do que alguns acreditavam, não existira um momento, um gatilho, um trauma responsável por tornar o entusiasmo em obsessão; apenas um processo lento e contínuo que impregnara completamente mente e alma.

Agora que a lâmina fria encostava-se ao pescoço e fragmentos de memória dissipavam-se serenamente, tinha certeza disso. Não que fizesse diferença, pois logo tudo desapareceria, do primeiro filhote dissecado no porão à última anotação em seu diário.

"O corpo do pirata Percy Dickson revelou uma engenhosa surpresa durante o procedimento de autópsia."

Realmente...

Escavara o corpo de Percy mais do que o necessário.

Mas por que mesmo?

A angústia semelhante a de um sonho lúcido preenchia o vazio, dúvidas retornavam acompanhadas de um terrível medo. Precisava superá-los. 
Precisava se concentrar nos motivos.

o local indicado
periferia da cidade.
esconderijo
acumulou
fortuna
aposentadoria
luxuosa.

Havia algo em seu bolso além do bisturi.
 Os ecos das palavras escritas em algum lugar do passado guiaram seus movimentos até que tocasse a aspereza do papel.

A mão que segurava a lâmina relaxou, derrubando-a, salpicada de sangue. Até então mal sentira a pressão em sua própria garganta, mas agora o pequeno corte latejava o suficiente para reavivar o instinto de autopreservação.

"...a preocupação com o sustento em idade avançada é competência exclusiva dos vivos..."

e eu ainda estou vivo.

Puxou longamente o ar dos pulmões e desdobrou o mapa que reproduzira anteriormente – há muitos anos ou ontem? Não importava.

O tesouro de Percy Dickson oculto na periferia das docas. É meu objetivo, e não importa se está além do inferno; pois o inferno não é novidade para mim. Já fui longe demais para me acovardar agora.

Sim, traíra a tripulação de Mortimer. 
Mentira para eles e para o governo sobre suas reais intenções.
Vivera quando deveria ter morrido. 
Ganhara uma posição ilegítima baseada em habilidosas mentiras.

...e daí?

Vocês mereceram, seus idiotas.

Um sorriso de escárnio abriu-se em seu rosto. Blindado com a obsessão que guiara toda sua vida, Charles Atkins podia caminhar de rosto erguido entre almas igualmente perdidas. 

3 comentários:

  1. *Respiro fundo*...então Charles vive!hauhauha...salvo por um pedaço de papel... o/
    E lá vamos nós aguardar a tão longínqua próxima segunda feira!!!

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  2. Saudações

    Charles, um homem que se nega até a própria morte...
    Que personagem interessante este.

    Até mais!

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  3. Geralmente quando leio algum conto que me atrai, surge automaticamente o cenário na minha cabeça. Consigo me colocar no ambiente ao ponto de sentir empatia pelos personagens. Nesse capítulo especificamente, fui transportado para o inconsciente do Charles.

    Enfim, vc consegue descrever muito bem o ambiente e os pensamentos dos personagens. Se vc usar um pouco mais de sensações vai ficar ainda melhor.

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