segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O Médico Real - IX

Depois que o cadáver se torna lenda, a verdade é irrelevante e se torna mero detalhe. Que o diga Edward Teach, pirata responsável por assombrar os mares durante período curto, porém suficiente para sua alcunha Barba Negra transcender mito e realidade ao longo dos séculos posteriores.

Tão eterno quanto o famoso capitão é seu navio Queen Anne's Revenge - A Vingança da Rainha Anna, monarca que passara para o outro lado um pouco antes da ascendência de Teach ao ofício pirata. A ideia de um fora-da-lei tomar para si uma vingança Real é aparentemente uma herege zombaria... mas a que ponto chegaríamos caso prestássemos atenção aos detalhes que cercam um mito?


O que há com esse verme impertinente? Aja de acordo perante a Rainha, cão sarnento!

Uma voz trovejante ressoou e um solavanco atingiu o pescoço de Charles, fazendo-o cair de joelhos no chão áspero. Antes que entendesse o que se passara, o agressor surgiu por trás dele segurando-o pelo colarinho encardido. Embora apodrecido como outros, seus olhos mantinham uma faísca selvagem no rosto barbado e seu odor de mar e sangue era tão forte que destacava-se mesmo na atmosfera impregnada de cheiros malditos.

Ed, querido, é só um mancebo desnorteado, sim? Deixe, deixe. o comentário da Rainha fez o violento pirata largar o médico, bufando, e fazer a volta para se postar ao lado dela. Nesse movimento, Charles viu que mais seis crianças o seguiam e juntavam-se às outras às saias da monarca.

Agora, meu jovem, por que tanta pressa nessa Londres onde o tempo não impera?

Notando que apenas a palidez exacerbada denunciava a real condição da Rainha, Charles cerrou os punhos e armou-se de toda sua disposição. Talvez a longa permanência naquele purgatório o estivesse perturbando, mas sua intuição gritava que, se havia uma saída, a mulher a sua frente detinha esse poder e ninguém mais.

Se aqui é Londres e Sua Majestade é a gloriosa Rainha Anna da Grã-Bretanha, as antigas docas estarão em algum lugar, e encontrá-las é o que preciso mais do que qualquer coisa do mundo!

Ora! a Rainha soluçou, levando seu leque ao rosto Se ainda lhe resta um lugar para ir, não é aqui seu lugar, criança. 

Ao fechar do leque, as crianças e Edward se afastaram, os ruídos cessaram e tudo pareceu desaparecer ao redor do cirurgião, exceto os olhos vazios da matrona. Sua visão começou a embaçar enquanto ela erguia o braço em um gesto de autoridade.

Você tem minha permissão para deixar Londres, cirurgião e embusteiro Chales Atkins!

A ordem atingiu Charles como uma explosão, e mais uma vez ele sentiu o chão sumir sob seus pés em uma queda infinita. O sorriso e as palavras da Rainha se perdiam como em uma névoa fugaz, assim como a noção de que não dissera nomes ou motivações na rápida conversa.

Se o peso que carrega não o trouxer de volta, o mérito é todo seu.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Magellan VII - Parte IX

Ymir e Kari conseguiam manter certa distância do grupo de marginais, mas eles eram persistentes e o veículo começava a dar sinais de mau funcionamento. Uma resposta atrasada do controle foi brecha suficiente para que um dos moleques acertasse um golpe certeiro no painel, causando a ativação forçada do pouso automático da U.M.
Imediatamente, ela foi cercada pelos adolescentes.

Podem ir saindo e entregando toda a mercadoria se não quiserem sentir o gostinho dos nossos brinquedos! o garoto que dera o comando pulou de seu skate para o teto da U.M., acertando-o com seu taco de beisebol dourado e arrancando aplausos de seus companheiros.

Irritado, Ymir cerrou os punhos e saiu do veículo sem pensar, sendo recebido com um golpe no estômago. Kari veio em seu socorro e levou uma tacada pelas costas de uma das garotas.

Essa vadia é atrevida. Não gosto dela, posso matar, Xoth?

Calma, Liann... faz tempo que ninguém tenta entrar na capital, vamos nos divertir um pouco. E os outros, peguem os suprimentos deles.

Então são vocês que estão atacando quem tenta entrar na capital...

Ei tiozinho, não olha assim pra mim. o garoto sorriu cinicamente e seus olhos avermelhados brilharam – Só estamos sobrevivendo nesse mundo maluco.

Vocês fizeram parte dessa loucura caçando qualquer líder que pregasse a paz desde que isso começou! Kari gritou, sua raiva superando o medo – Só aumentaram a histeria, seus doentes!

Já estava tudo morto, bonitinha. A gente só escancarou... sabe, seria injusto se só a gente sofresse. perturbadoramente calmo, ele levantou as mangas da camisa branca que usava, revelando horríveis cicatrizes de queimadura – A louca que fez isso ainda está livre, depois de ter queimado minha casa com todo mundo dentro. Ninguém resolveu nada, nem sabiam como lidar com isso. Geral aqui tem uma história parecida.

Então querem que todos passem pelo mesmo que vocês passaram? Isso consola vocês?

O garoto olhou profundamente nos olhos do casal, e depois para cada um de seus companheiros. Por fim, abriu um sorriso largo e prazeroso.

Consolar é pouco. Dá até tesão. estalou os dedos – Podem finalizar.

Tudo aconteceu muito rápido. Ymir teve a sorte de conseguir arrancar o taco de beisebol do primeiro moleque que tentou acertá-lo, conseguindo assim defender-se de outros, e Kari puxou o skate que estava ao lado de sua agressora para atingi-la.

MODO RESGATE CÓDIGO VERMELHO! Ymir gritou e a U.M. entrou em piloto automático,  forçando caminho entre os marginais na direção do casal. Logo que conseguiram entrar e iniciar a flutuação, o líder se empoleirou na porta tentando pular para dentro como um macaco selvagem.

Você não é o único que perdeu tudo, infeliz! com um último chute no rosto, Kari o mandou de volta ao chão no meio do bando.

Eles não vão desistir, mas creio que estaremos bem. Ymir sorria como se descobrisse algo divertido – Os skates deles ainda são movidos a bateria, não podem nos perseguir pra sempre enquanto tivermos essa U.M Especial.

É bom você estar certo, porque é isso mesmo que eles vão tentar fazer!

Apesar da previsão correta, três dias se passaram até que os adolescentes ficassem a pé, já próximos ao destruído Cinturão Resplandecente. Mesmo impossibilitados de continuar a perseguição pela avenida coberta de vidro cortante, eles ainda tiveram energia para escalar os destroços e xingar o casal a plenos pulmões. Mas se soubesse que o destino deles seria uma cidade em chamas, certamente o insano líder teria desistido facilmente de sua presa.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O Médico Real - VIII

Um lugar? Você disse que se lembra de um lugar? Um ponto específico, marcado em um mapa e tudo? Um mapa que veio com você?

Vejo que memorizou bem minhas palavras, dada a precisão com que as repetiu. Charles respondeu com um toque de ironia ao marinheiro estirado sobre um barril de cidra apodrecido. Ele mantinha sua caneca empoeirada suspensa no ar, encarando o médico com ar assombrado.

Bem, é a primeira vez que vejo alguém com uma lembrança tão forte por aqui. Se é tão importante, é melhor correr antes que ela desapareça. – virou a caneca em um gole, sorvendo a areia que logo em seguida deslizou pelas costelas expostas – Uma coisa dessas só pode ser resolvida pela Rainha.

E vocês têm uma Rainha? Charles levantou a sobrancelha, estranhando mais o respeito de um pirata pela Rainha do que a efetiva existência dela.

Aqui é Londres, amigo! É claro que temos Rainha! ele abriu os braços e soltou um riso rouco e debochado, como se aquilo fosse óbvio demais para ser comentado.

Que seja. Tenho pressa mesmo, se é o que preciso... onde posso encontrá-la?

Simples. Procure pelas cabeças abaixadas. – ele apontou uma direção com o dedo podre – Vai reconhecer as ditas no momento em que as enxergar.

Julgando que não arrancaria mais nenhuma informação útil do pirata em decomposição, Charles retomou a marcha na direção indicada. Sentia sua própria pele descascar-se e o pulso diminuindo o ritmo pouco a pouco, o que aumentava seu senso de urgência. Precisava sair dessa Londres antes que fosse tarde demais para seu corpo.

Impossível saber o quanto andara e onde estava exatamente quando o clima do ambiente pareceu mudar e o silêncio começar a se impor. Aos poucos, as figuras disformes espalhadas por todo o lugar foram interrompendo seus afazeres caóticos até se voltarem a uma só direção e, com sincronia inacreditável, caírem ao chão de joelhos.

Oh, mas esse aqui eu desconheço!  

Concentrado no fenômeno ao seu redor, o cirurgião não percebeu a voz feminina e estridente se dirigindo a ele, o único ainda em pé. Quando levantou os olhos, deu com uma figura feminina avantajada e grávida, usando largas vestes imperiais em frangalhos e uma peruca negra embaraçada. Ela o fitava com olhos vazios típico dos loucos, trazendo um bebê em farrapos nos braços e nove crianças cadavéricas de diferentes idades agarradas às suas saias.

E não é que é mesmo a Rainha?  

Vendo-se entre o assombro, o fascínio e o pastiche, Charles não evitou um sorriso e fez uma longa mesura, como ditava a tradição e as boas maneiras. Afinal, ainda era um médico real.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Magellan VII – Parte VIII



Ano 3115 CH – Ciclo 36 – Semana 4

Atravessar a capital? Você é engraçado, cara. Só porque sua U.M. é melhorzinha...

Só nos restou essa rota. Agora, pode encher a sacola, por favor?

Bem, o problema é de vocês... um barbudo de meia-idade usando um gorro encardido começou lentamente a colocar mantimentos na sacola de Ymir – Já vi alguns malucos morrerem tentando essa proeza. Desde a queda do Cinturão Resplandescente, aquilo lá virou um antro...

O que mais você sabe sobre a situação?

No mesmo instante, o negociante esticou a mão aguardando um novo pagamento. Ymir revirou os olhos perante aquele abuso que estava se tornando comum em todo tipo de comércio e remexeu na mochila, procurando qualquer coisa.

Que tal isso aqui? - retirou um crucifixo translúcido – É de Vitral Diamante, o mesmo material dos prédios do Cinturão.

Oh, isso é interessante, rapaz – com os olhos brilhando, o comerciante tomou o item das mãos de Ymir  – Bem, vai encontrar muito disso por lá, mas não em condições de uso. O Cinturão costumava ser a joia de boas-vindas da capital, mas agora é culpado por seu isolamento... sua destruição ilhou a cidade e mostrou como o Vitral pode ser fatal... bem, ninguém imaginaria que todos os edifícios acabassem em ruínas ao mesmo tempo, né?

Depois disso, Ymir não descobriu mais nada de útil e retornou ao veículo onde Kari montava guarda. Depois de uma última olhada ao redor, ambos entraram na U.M. e só falaram depois de selar as janelas e ativar a flutuação.

Tive de me desfazer do crucifixo de Jano... – Ymir bufou insatisfeito, mas deixou sua frustração de lado ao vê-la tentando se contatar ao comunicador da mãe novamente. À exceção de seus irmãos, desconheciam o paradeiro de toda a família e esse desespero os assaltava frequentemente.

– Dione também não atendeu hoje. Espero que esteja tudo bem lá no Endeavour... bem, ela também tem suas obrigações como médica lá... mas queria que ela retornasse a ligação...

Venha aqui. ele colocou a mão sobre a dela, trazendo-a mais para perto de si e beijando-a demoradamente. A situação extrema que viviam deixava pouco tempo para trocarem carícias, mas às vezes era necessário demais lembrar que ainda tinham um ao outro naquele caos de incertezas.

Entretanto, um baque seco e forte no teto do veículo os puxou de volta para a realidade alguns minutos depois. As conversas do lado de fora eram indiscerníveis, mas um comando forte e malicioso confirmou terríveis intenções.

Batam até esmigalhar!

Droga, justamente agora? sofrendo fortes pancadas na U.M, só restou ao casal ir a toda velocidade para frente. Kari ativou o painel externo e soltou um grunhido de desgosto quando viu os agressores, um bando de moleques com tacos de beisebol manchados de sangue e skates flutuantes de modelo ultrapassado.

Aqueles... Ymir... Kari engoliu em seco. Não esqueceria o rosto dos assassinos do Dalai Lama, não importa quanto tempo tivesse passado.

Eu sei,eu sei. Mas, mesmo que sejam perigosos... eles não podem nos alcançar com essas velharias de 2015! Ymir respirou fundo, concentrado no trajeto a sua frente e tentando ser otimista quanto às condições do próprio veículo, que obviamente não via manutenção desde o começo da viagem.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O Médico Real - VII

De uma infância solitária e fadada a cumprir expectativas, nasceu uma juventude empenhada a investir toda energia em um único objeto. Diferente do que alguns acreditavam, não existira um momento, um gatilho, um trauma responsável por tornar o entusiasmo em obsessão; apenas um processo lento e contínuo que impregnara completamente mente e alma.

Agora que a lâmina fria encostava-se ao pescoço e fragmentos de memória dissipavam-se serenamente, tinha certeza disso. Não que fizesse diferença, pois logo tudo desapareceria, do primeiro filhote dissecado no porão à última anotação em seu diário.

"O corpo do pirata Percy Dickson revelou uma engenhosa surpresa durante o procedimento de autópsia."

Realmente...

Escavara o corpo de Percy mais do que o necessário.

Mas por que mesmo?

A angústia semelhante a de um sonho lúcido preenchia o vazio, dúvidas retornavam acompanhadas de um terrível medo. Precisava superá-los. 
Precisava se concentrar nos motivos.

o local indicado
periferia da cidade.
esconderijo
acumulou
fortuna
aposentadoria
luxuosa.

Havia algo em seu bolso além do bisturi.
 Os ecos das palavras escritas em algum lugar do passado guiaram seus movimentos até que tocasse a aspereza do papel.

A mão que segurava a lâmina relaxou, derrubando-a, salpicada de sangue. Até então mal sentira a pressão em sua própria garganta, mas agora o pequeno corte latejava o suficiente para reavivar o instinto de autopreservação.

"...a preocupação com o sustento em idade avançada é competência exclusiva dos vivos..."

e eu ainda estou vivo.

Puxou longamente o ar dos pulmões e desdobrou o mapa que reproduzira anteriormente – há muitos anos ou ontem? Não importava.

O tesouro de Percy Dickson oculto na periferia das docas. É meu objetivo, e não importa se está além do inferno; pois o inferno não é novidade para mim. Já fui longe demais para me acovardar agora.

Sim, traíra a tripulação de Mortimer. 
Mentira para eles e para o governo sobre suas reais intenções.
Vivera quando deveria ter morrido. 
Ganhara uma posição ilegítima baseada em habilidosas mentiras.

...e daí?

Vocês mereceram, seus idiotas.

Um sorriso de escárnio abriu-se em seu rosto. Blindado com a obsessão que guiara toda sua vida, Charles Atkins podia caminhar de rosto erguido entre almas igualmente perdidas. 

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Magellan VII – Parte VII

Ano 3115 CH – Ciclo 14 – Semana 1

 Em um estabelecimento discreto de uma pequena cidade, um casal tomava café silenciosamente na mesa da janela, de onde podiam ver sua U.M. estacionada. Kari falava baixo a um aparelho enquanto Ymir prestava atenção nas notícias ao vivo de Laurásia, a maior cidade do país, e perdia a fome repentinamente.

– Sim, Dione, nós estamos bem... oi? Está me ouvindo? Como disse, estamos indo o mais rápido possível, mas muitas vias de circulação estão bloqueadas ou perigosas demais...

Hoje cedo, em pleno centro da cidade, o projetista Nero C. Ewetard atropelou um pedestre, depois identificado como seu vizinho, esmagando-o contra a parede de um edifício deliberadamente...

– Sim, estamos indo pela rota da Laurásia. E você, como está...? Eu perguntei, como está? Entendo. Entrarei em contato de novo. Sim, tomaremos cuidado. Te amo, irmã. Logo nos veremos. – ela desligou o comunicador e segurou as duas mãos de Ymir, olhando para o telão – continua se espalhando...

– Está cada vez pior. Ao menos sua irmã está bem, pelo que ouvi.

– Sim, o Centro Espacial Endeavour é o mais afastado e seguro do continente... estão isolados lá, mas ela já garantiu que nos aceitarão quando chegarmos. – ela suspirou, rezando consigo mesma para que a irmã continuasse em segurança e que eles fossem capazes de alcançá-la.

– O que será que Jano... tinha pra nos dizer...? – ele comentou distraidamente, como fazia às vezes, olhando para a Unidade Especial estacionada que já tinha salvo as vidas deles mais de uma vez naquele curto período de tempo.

Kari não respondeu. As olheiras de Ymir pioravam a cada dia pela preocupação e pesadelos com seus amigos astronautas que tiveram fins terríveis um seguido do outro. Por conta disso, ela estava alerta o tempo todo, sabendo que a loucura incubara-se no coração dele também. Não podia deixar que caíssem naquele abismo desconhecido de raiva irracional.

– Talvez seja melhor evitarmos com mais afinco as notícias e rumores. Minha cabeça tem piorado com elas. – ele completou, como se concordasse com os pensamentos dela.

– É verdade. Vamos nos concentrar no nosso objetivo.

E agora o líder espiritual Dalai Lama transmitirá uma mensagem de paz e compreensão para toda a humanidade neste momento crítico.

As notícias traziam agora um senhor muito velho, moreno e vestido com uma túnica vermelha segurando um rosário na mão. Kari assentiu discretamente a cabeça perante a visão do Dalai Lama, título que resistira ao passar das eras na conservação do Budismo.

– Irmãos do mundo inteiro. Venho aqui hoje para deixar uma palavra de consolo para os corações aflitos...

Seu gesto poderia ter sido de grande valia, caso a conferência não tivesse sido invadida por uma turba de adolescentes em skates voadores de segunda mão e armada com tacos de beisebol, usados para atacá-lo ferozmente durante o discurso. No meio da confusão e gritaria, apenas a câmera automática permaneceu imóvel, transmitindo o festim de violência ao vivo para o mundo inteiro.

Paralisada perante a cena terrível, Kari gritava e tremia sem conseguir desgrudar os olhos da tela, e teria continuado ali se Ymir não a arrastasse correndo para dentro do veículo antes que o estrago fosse ainda maior. Agarrada ao rosário, ela chorava e balbuciava enquanto ele tentava acalmá-la.

– Kari! Kari, olhe pra mim! Querida, acalme-se... Eu estou aqui. – deixou que ela chorasse no peito dele o quanto precisasse, admitindo com amargura que era tudo que podia fazer. 

Não podia nem evitar que suas próprias lágrimas caíssem e seus ombros cedessem, acúmulo do inferno das últimas semanas. Ficaram ali, agarrados um ao outro feito náufragos em meio à tempestade.

– O que vai ser de nós? O quê...? – o lamento de uma senhora que passava a esmo na rua, aos prantos, traduzia bem a situação que o mundo se encontrava - e que tendia ao pior.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

- Terceiro Aviso Importante -

Olá, tudo bem?
Venho anunciar mais duas parcerias queridíssimas pra esse blog! Yay!

A primeira é do amigo Alexandre Lourenço do blog Robô Esmaga e seus quadrinhos de costumes feitos em São José dos Pinhais! Não deixem de conferir!

A segunda é da amiga Sabrina Viana e seu novo blog de textos casuais, o Então Falei! Deem uma olhada!

Eles ficarão permanentemente nos links Recomendados, do lado direito!

terça-feira, 3 de setembro de 2013

PROCEDIMENTO

Dr. Atkins virou as costas para a mesa de madeira que ocupava o centro do quarto e tateou os jarros de vidro na estante com o dedo indicador, observando-os cautelosamente até selecionar o que melhor se adequava a sua necessidade. Um sorriso cavado e torto nasceu em sua face enrugada e pálida enquanto puxava o objeto da prateleira apinhada com certo esforço, fazendo um líquido viscoso agitar-se dentro do recipiente.

Encarou novamente a mesa, onde uma cabeça sem vida estava separada do tampo do móvel por um suporte improvisado. Não precisava do seu pequeno bisturi para o procedimeto seguinte, apenas da pinça guardada no bolso do jaleco. Pegou-a rapidamente e, sacudindo o excesso de líquido, retirou o conteúdo esférico embebido nele e encaixou-o milimetricamente na órbita vazia de sua cobaia. O globo ocular ocupou o espaço perfeitamente, tal como a fileira de frascos ocupava cada fresta da estante.

Dr. Atkins sorriu.

 Ilustração por Undead Kim


Conto postado originalmente em março, atualizado por conta da parceria com a ilustradora Kim!
Conheça mais sobre o trabalho dela nos Recomendados, em Undead Ooze.
Estou trabalhando em mais parcerias desse tipo com amigos das artes visuais, esperem por novidades.
Até a próxima :)

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

O Médico Real - VI

BWAHUABWAHUABWAHUA!

A risada rouca e forte poderia ser comparada à gargalhada de um tuberculoso insano. Incontáveis vítimas do capitão G. Mortimer a tiveram como marcha fúnebre antes de serem jogadas ao mar, ceifadas pela espada, à bala... ou encontrarem um destino ainda mais tenebroso no interior de seu navio.

Eu não me importo com que tipo de heresia você faz no seu porão, Atkins, contanto que nenhum dos meus marinheiros morra por causa de um furinho de nada. E sabe o que mais? Até que eu gosto da ideia de ameaçar os pestes com um cafuné do seu bisturi ao invés da prancha. Acho mais efetivo... e divertido!
BWAHUABWAHUABWAHUA!

Tão característico a Mortimer era seu riso sádico que sua própria marcha fúnebre não poderia ser outra. Partiu com ele no momento do enforcamento, como um legado. Ou, mais apropriadamente, uma maldição.

Sentindo a força dessa maldição esmagar sua mente, o médico perdido corria.

 A presença dos esqueletos e cadáveres transitando em um sórdido burburinho se dissolvia, pois o cenário infernal não era nada comparado aos sussurros de sua consciência: as palavras do perneta sem sorte, a risada do líder sádico e as pragas jogadas pelos condenados do passado se mesclavam em um redemoinho de ódio e escárnio.

Corra o quanto quiser.

A balbúrdia em seus ouvidos amainou até restar apenas o sussurro cínico de Mortimer, capaz de fazer o mais esnobe cirurgião encolher os ouvidos.

O cheiro de sal e sangue que exalamos nos conduz ao mesmo porto inescapável.

...
..
.

Sim. 
É verdade.
Não há saída.

.
..
...

Claro. Depois de tantos pecados cometidos por seu bisturi...
 Aliás... falando nisso, ele está aí, não está?
.
Charles  sentiu o peso da pequena lâmina em seu bolso. A Condutora de sua habilidade técnica, que manuseava tão bem quanto uma parte de seu corpo.
.
Afinal, não sobrou mais nada.
...
A voz tão amigável tinha razão.
Por que insistir com o calvário?
.
Sorriu. O toque gelado da prata entre os dedos, notou, era o único carinho que conhecia.
...
..