“Oh, então você quer saber? Mas nada nesse mundo
é de graça, compreendes? Porém, se tivesse algo para barganhar, poderíamos
conversar mais...”
–
PRO INFERNO COM ESSA MERDA!
Um
amontoado de peixes defumados, sapatos e diversas bugigangas se acumulava na
porta do depósito e quase bloqueava a pequena escada que levava às pilhagens e pertences de menor importância. Em meio ao caos, se batendo de um lado para outro feito um inseto recém capturado, a Ruiva ocasionalmente atirava alguma coisa na direção da saída gritando palavrões e
maldições. Iluminando
parcialmente o cômodo fedorento, apenas uma pequena lamparina pendendo
de um ponto inalcançável na parede sem relógio. Não ouvia sons vindos de fora, tampouco podia saber se seus brados eram audíveis, já que não causavam nenhuma reação. Sua única indicação de tempo e espaço era o balanço do navio, sinal de que já haviam partido e de que seu destino era
totalmente incerto.
Em suma, impossível saber quanto tempo havia se passado desde que entrara no navio e se
vira iludida com a conversa do capitão pirata, que prometera levá-la embora com um 'acordo diplomático' e
terminou por jogá-la em um canto sujo como se fosse parte do espólio. A parte
mais odiável é que ele cumprira sua parte, embora a tivesse enganado
perfeitamente.
– “Primeira lição; preste atenção aos termos
de uma barganha.” – foram as palavras dele antes de atirá-la escada abaixo
e trancar a porta, gargalhando escrachadamente.
– E eu entreguei todos o nosso estoque de roubo da cidade... AHHHHHH QUE
ÓDIO!!! – ela chutou com força um baú próximo, ouvindo um inesperado grunhido
em resposta. Pulou três metros para trás instintivamente e agarrou a primeira
coisa que poderia usar como arma, no caso, uma caneca lascada.
– QUEM ESTÁ AÍ? – não houve resposta, então ela se aproximou cautelosamente e
pronta para atacar. Pelo sim pelo não, era melhor não correr riscos. Mas quando
ergueu a caneca, o baú abriu-se repentinamente e um dos seus companheiros de
gangue surgiu, totalmente sujo e com hematomas esparsos. A situação foi tão inesperada que a Ruiva piscou e
abaixou a arma improvisada, incrédula.
– Ranhento...? Mas que porra é essa?
– O que parece? – o garoto fungou
e saiu com dificuldade do baú – Eu tava fazendo um serviço bom em uma das casas
durante a confusão, quando os piratas apareceram lá. Eu fiquei com medo e me
escondi... acho que acabei dormindo, daí ouvi seus gritos e o chute... onde a gente tá?
– Só mesmo você pra dormir numa
situação dessa... e teria sido melhor não acordar, caso tenha percebido, estamos no porão dos malditos piratas! – ela abriu
os braços impacientemente, arrastando as próximas palavras por soarem
constrangedoras – Fui enganada. Me pegaram.
– Pegaram você??? E o que a gente faz agora? A gente tá... no mar??? – a expressão do rosto do garoto adquiriu um assombramento absoluto, do qual a Ruiva fez pouco caso e deu de
ombros.
– Se eu fosse você, voltava pro
baú, já que ninguém sabe que está aqui. Se tiver sorte, consegue passar batido
até o próximo porto. E quem sabe eu também...
Sentaram na palha áspera que
cobria o chão e o silêncio pesou pelos próximos minutos, até Ranhento se recuperar do choque inicial e catar alguns peixes
defumados, dando um deles para
Ruiva com um sorriso sem graça que quase a fez destratar o gesto, mas o
estômago dolorido de fome segurou sua língua. Sua posição, percebia com amargura, não era mais de líder e seu orgulho fora esmagado. Definitivamente não era o que esperava de uma fuga
definitiva de Kinsale...
– Não importa a encrenca, comer é o mais importante, né? Mas... no fim você conseguiu, né
Ruiva? – disse ele entre mordidas famintas e fungadas do nariz que escorria, sem se importar com o olhar perdido da garota nem com o catarro que por vezes chegava às suas mãos.
– Consegui o que, sacripanta?
– Não sei pra onde estamos indo,
mas deve ser um lugar bem maior que a vila. Talvez seja até a Inglaterra.
A ingenuidade do garoto era quase
irritante, mas ela se sentia desmoralizada demais para qualquer zombaria, então
se limitou a bufar e esfregar o rosto com as mãos fedendo a peixe. As palavras
do pirata voltavam a sua mente toda hora e não contribuíam nem um pouco para que
acalmasse o espírito.
– “Preste atenção aos termos de
uma barganha...” quem ele pensa que é??? - resmungou para si, levantando-se para novamente atirar um badulaque qualquer na direção da saída e quem sabe sentir-se menos furiosa.
Ela só não contava que a porta
fosse se abrir exatamente nesse momento pela austera mulher de amarelo que a
recebera com óbvio desgosto há algumas horas.