quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Rota para Cingapura - Parte V

“Oh, então você quer saber? Mas nada nesse mundo é de graça, compreendes? Porém, se tivesse algo para barganhar, poderíamos conversar mais...”

– PRO INFERNO COM ESSA MERDA!

Um amontoado de peixes defumados, sapatos e diversas bugigangas se acumulava na porta do depósito e quase bloqueava a pequena escada que levava às pilhagens e pertences de menor importância. Em meio ao caos, se batendo de um lado para outro feito um inseto recém capturado, a Ruiva ocasionalmente atirava alguma coisa na direção da saída gritando palavrões e maldições. Iluminando parcialmente o cômodo fedorento, apenas uma pequena lamparina pendendo de um ponto inalcançável na parede sem relógio. Não ouvia sons vindos de fora, tampouco podia saber se seus brados eram audíveis, já que não causavam nenhuma reação. Sua única indicação de tempo e espaço era o balanço do navio, sinal de que já haviam partido e de que seu destino era totalmente incerto.

Em suma, impossível saber quanto tempo havia se passado desde que entrara no navio e se vira iludida com a conversa do capitão pirata, que prometera levá-la embora com um 'acordo diplomático' e terminou por jogá-la em um canto sujo como se fosse parte do espólio. A parte mais odiável é que ele cumprira sua parte, embora a tivesse enganado perfeitamente. 

“Primeira lição; preste atenção aos termos de uma barganha.” – foram as palavras dele antes de atirá-la escada abaixo e trancar a porta, gargalhando escrachadamente. 

– E eu entreguei todos o nosso estoque de roubo da cidade... AHHHHHH QUE ÓDIO!!! – ela chutou com força um baú próximo, ouvindo um inesperado grunhido em resposta. Pulou três metros para trás instintivamente e agarrou a primeira coisa que poderia usar como arma, no caso, uma caneca lascada.

– QUEM ESTÁ AÍ? – não houve resposta, então ela se aproximou cautelosamente e pronta para atacar. Pelo sim pelo não, era melhor não correr riscos. Mas quando ergueu a caneca, o baú abriu-se repentinamente e um dos seus companheiros de gangue surgiu, totalmente sujo e com hematomas esparsos. A situação foi tão inesperada que a Ruiva piscou e abaixou a arma improvisada, incrédula.

– Ranhento...? Mas que porra é essa?

– O que parece? – o garoto fungou e saiu com dificuldade do baú – Eu tava fazendo um serviço bom em uma das casas durante a confusão, quando os piratas apareceram lá. Eu fiquei com medo e me escondi... acho que acabei dormindo, daí ouvi seus gritos e o chute... onde a gente tá?

– Só mesmo você pra dormir numa situação dessa... e teria sido melhor não acordar, caso tenha percebido, estamos no porão dos malditos piratas! – ela abriu os braços impacientemente, arrastando as próximas palavras por soarem constrangedoras – Fui enganada. Me pegaram.

– Pegaram você??? E o que a gente faz agora? A gente tá... no mar??? – a expressão do rosto do garoto adquiriu um assombramento absoluto, do qual a Ruiva fez pouco caso e deu de ombros.

– Se eu fosse você, voltava pro baú, já que ninguém sabe que está aqui. Se tiver sorte, consegue passar batido até o próximo porto. E quem sabe eu também...

Sentaram na palha áspera que cobria o chão e o silêncio pesou pelos próximos minutos, até Ranhento se recuperar do choque inicial e catar alguns peixes defumados, dando um deles para Ruiva com um sorriso sem graça que quase a fez destratar o gesto, mas o estômago dolorido de fome segurou sua língua. Sua posição, percebia com amargura, não era mais de líder e seu orgulho fora esmagado. Definitivamente não era o que esperava de uma fuga definitiva de Kinsale...

– Não importa a encrenca, comer é o mais importante, né? Mas... no fim você conseguiu, né Ruiva? – disse ele entre mordidas famintas e fungadas do nariz que escorria, sem se importar com o olhar perdido da garota nem com o catarro que por vezes chegava às suas mãos.

– Consegui o que, sacripanta?

– Não sei pra onde estamos indo, mas deve ser um lugar bem maior que a vila. Talvez seja até a Inglaterra.

A ingenuidade do garoto era quase irritante, mas ela se sentia desmoralizada demais para qualquer zombaria, então se limitou a bufar e esfregar o rosto com as mãos fedendo a peixe. As palavras do pirata voltavam a sua mente toda hora e não contribuíam nem um pouco para que acalmasse o espírito.

– “Preste atenção aos termos de uma barganha...” quem ele pensa que é??? - resmungou para si, levantando-se para novamente atirar um badulaque qualquer na direção da saída e quem sabe sentir-se menos furiosa.

Ela só não contava que a porta fosse se abrir exatamente nesse momento pela austera mulher de amarelo que a recebera com óbvio desgosto há algumas horas.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Rota para Cingapura - Parte IV

Levou menos de um segundo. O ferimento rasgou o ombro do policial, dando brecha para o pirata tomar o sabre e cortar a garganta dele em um movimento veloz demais para olhos destreinados acompanharem.

– Esse não atrapalha mais.

A Ruiva levantou a cabeça ao ouvir a sentença, vendo o cadáver do guarda estirado ao chão e o pirata de costas recuperando sua espada. Ela tapava com as duas mãos o nariz, que sangrava por ter sido atingido em cheio pelo coice da arma. Apesar da dor, segurou as lágrimas e tentou pegar a pistola caída, mas ela pareceu mais pesada do que antes.

– Isso me pertence também – um pé postou-se bruscamente sobre a mão dela – Uma boa arma é isso, Carmezita é fiel ao dono mesmo nas situações mais improváveis.

Não havia traço de hostilidade no tom de voz do pirata, mas a garota não se daria ao luxo de abaixar a guarda e agiu da maneira que considerava mais correta em sua posição.

Essa área já tem dona. Arranje outro lugar pra roubar.

Sua intimidação costumava funcionar com trombadinhas das ruas rivais, mas dessa vez a única reação que conseguiu foi uma gargalhada debochada. Convém dizer que, se tratando de um pirata, esse resultado era longe de ser ruim, mas a frustrou de qualquer modo.

– Que conveniente, então! Estaremos conversando de líder para líder! – ele levantou-a pelo cangote repentinamente, colocando-a sobre alguns caixotes para que ficassem na mesma altura. – Capitão O’ Neil Korsan representando a frota Luxúria de Netuno. Estou falando com...?

– Ruiva. Só Ruiva. – apesar do nervosismo óbvio, ela se forçou a não gaguejar. Mas não pôde evitar as pupilas arregaladas quando o ar foi cortado pelo som da lâmina do pirata sendo sacada, ficando entre os dois de uma forma quase casual.

– Então, Srta. Ruiva, lhe informo oficialmente que estamos em processo de pilhagem de seu território, como já percebeu. Todos os tesouros e vidas da população nos pertencem, e qualquer resistência é inútil. Alguma objeção de sua parte?

Não era difícil perceber que sua única opção para sobreviver era entrar na conversa do pirata, por mais estranha e inesperada que lhe parecesse, então respirou fundo e continuou da melhor forma que podia.

– Eu... eu acabei de salvar você! Nessa terra, você tem uma dívida comigo...

– Ah, é mesmo? – ele interrompeu – Pelo que pude ver em seus olhos, seu desafeto com aquele cavalheiro já não era de hoje. Teria atirado nele se tivesse a chance, independente de qualquer vida em jogo, não é verdade?

– Isso não muda que...

– Vejo que não nega. E pergunto agora, a arma que lhe proporcionou tão justa vingança, a quem pertence?

– O que a sua arma tem a ver com...

– Exato, minha arma e minha pólvora. Logo, quem tem uma dívida comigo é você; uma vida e uma bala. Como pretende pagar isso?

Ele sorria largamente, divertindo-se com a confusão que se formou na expressão da menina. Entretanto, a surpresa saltou para o rosto dele quando, depois de alguns instantes, os olhos dela brilharam e um arremedo de sorriso ameaçou formar-se entre as manchas de sangue, do jeito que as crianças agem quando interessadas em saber como um brinquedo funciona.

– Como o senhor faz isso?

Longe dali, o porto jazia completamente tomado pela pirataria, a ponto do tédio começar a se instalar entre os saqueadores. As coisas poderiam ter ficado piores para a população se eles não temessem verdadeiramente a voz de comando ali presente.

– É o que basta. Esperemos o retorno de O’Neil.

Um vulto surgiu entre os piratas e foi reverenciado por eles, que se aquietaram imediatamente. Quem os supervisionava severamente era uma mulher muito alva, de cabelos negros, olhos puxados e maquiagem leve, destacando-se a sombra vermelha formando um risco discreto e firme na pálpebra inferior. Seu vestido amarelo de corte reto e a ausência de sapatos completavam a visão exótica. Ela se voltou para uma rua que levava à cidade, como se soubesse o que esperar dali.

– Já era hora. – comentou para si mesma quando viu a silhueta de O’ Neil saindo das sombras, vindo daquela direção. Entretanto, levantou as sobrancelhas ao ver algo além das suas expectativas e foi ao encontro dele, que agiu como se nada houvesse de anormal.

– Tudo certo por aqui, Lixiu?

– Por aqui, sim. E quanto a isso? – ela apontou com seus dedos longos e unhas compridas para a garotinha ruiva e esfarrapada que o capitão carregava pelo braço. Talvez o mais estranho, na verdade, fosse a expressão tranquila e satisfeita da menina.

– Ah, foi um bom negócio que fiz há pouco. Antes de sairmos, pegue dois rapazes para o último carregamento. Têm algumas coisas boas nos becos, escondidas pelos ratinhos eficientes da cidade...

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Rota para Cingapura - Parte III

“Não são os ingleses.” “Piratas.” “Piratas estão atacando.”
 
Os brados que chegavam aos ouvidos da Ruiva serviam como música de fundo da visão mais incrível que já testemunhara. Três grandes naus saudavam o porto com tiros de canhão, destacando-se as velas vermelhas e o avantajado casco esguio da maior delas, diferente de qualquer outro navio que já tivesse aportado naquela parte do mundo. Se isso era capaz de surpreender um marinheiro experiente, quem dirá uma criança que nunca saíra de sua vila de pescadores.

Os piratas saltaram em terra como uma nuvem de gafanhotos sanguinários, fazendo os até então orgulhosos rebeldes se verem impotentes perante uma emergência mais real e verdadeira que qualquer boato sobre ingleses de presas e garras afiadas. Alguns clamavam pela ausente marinha do próprio país e outros apelavam em vão a Deus, mas a maioria não teve muito tempo para lamentações. O fio da espada dos invasores era eficiente e letal.

Alheia ao caos e a matança, a Ruiva continuava fascinada pelo grande navio cuspidor de guerreiros. Esquecera a fome, os amigos e até as moedas que estariam rolando dos bolsos dos caídos, sentindo-se irresistivelmente atraída pelas formas extravagantes da embarcação. Um pensamento sacudiu-se em seu coração e traduziu-se em um sorriso ganancioso.

– Deve ser ainda melhor por dentro.

Chegou a ensaiar dois passos para frente, mas o mundo real atrapalhou seu ímpeto. Uma onda seguida de uma explosão particularmente grande atingiu o local onde ela estava, jogando-a para longe da fortaleza vermelha. A água fria e o susto foram suficientes para quebrar seu estado de encantamento, a batalha ao redor pareceu grande demais e, pela primeira vez em muito tempo, sentiu-se pequena como a criança que era. Seus seguidores ficariam desapontados em vê-la correndo e gritando para dentro da cidade como um ratinho, mas eles também estariam tão ocupados quanto ela em sobreviver.

– Sobreviver. Eu só preciso sobreviver.

Os primeiros incêndios começavam a se alastrar pela cidade, junto às risadas cínicas dos saqueadores e aos gritos da população. Janelas e portas batiam, fechando-se com violência. Uma grande quantidade de pessoas se amontoava desesperada na porta da construção mais forte da vila, a igreja, onde o mesmo padre que chutava os órfãos famintos quase diariamente agora se trancava sozinho no confessionário, argumentando consigo mesmo que os pecadores não deveriam entrar. A justiça divina o salvaria, ele não tinha culpa de nada. Mas rezaria por todos em sua generosidade.

Ao ver isso, a Ruiva se lembrou de algo muito importante. Ninguém salvaria ninguém, ninguém faria como o Cristo que tanto louvavam diariamente. Correr feito uma bala perdida não a salvaria, mas sim o contra-ataque.

– Não está tão diferente do que sempre foi. É só mais barulhento, e tem mais concorrência.

Vivera até ali aproveitando as oportunidades entre os vãos e vielas da sociedade e não havia razão para agir diferente. Apressou-se para o lado das melhores casas, imaginando que os piratas não chegariam lá antes dela se assim quisesse – afinal, era seu território. Sua previsão estava certa, e não demorou a juntar tudo que pudesse carregar de comida e pertences de uma casa vazia. Lamentava apenas que não encontrasse sinal de nenhum amigo.

– Parece que ninguém conseguiu chegar aqui... espero que estejam se virando... é melhor eu ir embora depressa, antes que os piratas apareçam.

Entretanto, gritos e sons de lâminas se chocando na rua ameaçavam que podia ser tarde demais pra escapar com segurança. A Ruiva abriu cuidadosamente uma fresta da porta para avaliar a situação e viu um pirata alto e forte, de barba escura, vestindo um pomposo manto azul que o destacava dos outros saqueadores. Ele enfrentava o chefe da polícia da cidade em um duelo que parecia equilibrado.

Ela teria aproveitado a chance de escapar enquanto eles estavam ocupados se não tivesse visto a pistola do policial caída na frente da casa, quase aos seus pés. Esse momento de hesitação foi suficiente para ser notada.

– Garotinha! Me dê essa arma aqui!

O policial gritava para ela, que levantou o rosto e encontrou o pirata dominado, o sabre apontado pra sua garganta e a espada caída longe. Apesar disso, sua expressão era tranquila até demais, diferente do afoito guarda. Ele ficou ainda mais ansioso quando a Ruiva esgueirou-se pela porta e pegou desajeitadamente a pesada arma. Ela se aproximou lentamente deles, ensaiando apontar a pistola com as duas mãos. Uma expressão confusa se formou na face do policial e o sorriso do pirata pareceu expandir-se discretamente. A garota começou a tremer pelo esforço e pelas lembranças que vinham a sua mente.

Lembranças de todas as vezes em que aquele homem da lei e seus subordinados perseguiram, surraram e até causaram a morte de amigos e conhecidos seus, a ponto de acabarem mais temidos e evitados do que as gangues rivais. Lembranças das pessoas de bem que os chamavam para expulsar os órfãos fedorentos da porta de suas casas. E muitas outras, incontáveis memórias que nunca a deixaram realmente em paz.

Entre elas, pairava a única certeza que a guiara na vida: o contra-ataque a salvaria.

A dor e a humilhação guardadas pesavam muito mais que o gatilho, do qual saiu uma bala carregada de pólvora e lembranças.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

William Pennyworth Só Queria Uma Vida Tranquila

A porta se abriu e uma figura alta adentrou silenciosamente o quarto, sua veste negra mesclando-se às sombras. A débil luz da lamparina tremulava ao lado da cama, onde uma pessoa roncava sofregamente. O visitante aproximou-se dela, observou-a por alguns instantes e pousou a mão sobre o seu pescoço...

– Parece que os batimentos cardíacos estão em ordem. – William pensou consigo mesmo, sorrindo para o pai adormecido. Ajeitou o travesseiro e cobertores com cuidado para que não despertasse e se pôs a recolher as garrafas vazias jogadas pelo quarto. Com pesar, percebia que elas só aumentavam dia após dia, assim como o odor de uísque e aguardente na casa. Se as coisas piorassem, poderiam se tornar irreversíveis...

– Apesar de que elas já se tornaram. – consultou seu relógio de bolso, verificando que a hora de seu próximo compromisso da noite se aproximava. E seria uma noite tão decisiva quanto aquela em que encontrara o lorde negro e salvara um filete da esperança que esvaía-se junto à pesada chuva.

Antes de sair, olhou mais uma vez para o velho senhor como se pedisse coragem e bênção, quase o garotinho que costumava buscar refúgio dos olhares reprovadores e dos ameaçadores monstros do armário. Mas talvez ele mesmo estivesse se tornando um dos monstros agora.

Eu vou matar um homem hoje, pai. – sussurrou, tendo consciência que o sono alcoólico o impediria de ouvir a dura confissão – Talvez eu não volte, e se voltar, não serei o mesmo. Mas não tenho escolha. Eu...

Calou-se. O velho senhor não deveria carregar mais esse fardo, mesmo inconscientemente. William só precisava ter em mente seus próprios motivos, e eles eram claros como um farol aceso no oceano noturno.

Apagou a lamparina, deixou um envelope sobre o criado-mudo e deslizou para fora do quarto. Não chovia, tampouco havia Lua ou nuvens para testemunharem o que viria a seguir.

"Olá pai. Como tem passado?

Os deveres na casa Nightray me impedem de estar com o senhor com mais frequência, mas pude passar aí rapidamente noite passada, durante uma breve viagem a serviço. Como era tarde da noite, o senhor já ressonava e não quis acordá-lo.

Fiz uma rápida limpeza, como pode perceber. Não fique magoado, é meu jeito. Mas pode brigar comigo da próxima vez que nos vermos.

O médico deve lhe fazer uma visita essa semana. Por favor, como seu filho, peço que siga as recomendações dele. Afinal, o senhor precisa estar saudável para passearmos em seu aniversário, não é mesmo?

Por enquanto me despeço. 

Com amor,
William."

O veneno espalhou-se rapidamente, culminando em um infarto fulminante em pleno baile dançante. O copo de vinho que a vítima segurava espatifou-se, tingindo o tapete e a noite de vermelho vivo...

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Rota para Cingapura - Parte II

O crepúsculo avermelhado contrastava com a superfície azul do mar e as gaivotas sobrevoavam calmamente os barcos de pesca que voltavam ao porto. A paisagem pacata transmitia uma sensação de paz, mas bastava um fragmento de prosa miúda entre os marinheiros para essa sensação estremecer.

– Dizem que os ingleses vão atacar a qualquer momento.

– Sim, até tem gente que diz que eles já estão a caminho. Mas seja como for, vão comer chumbo pelo rabo!

– Com certeza, pois Deus está do nosso lado! A Irlanda ficará livre desses porcos protestantes!

Cuspiram no chão com desprezo, mudando em seguida o assunto para a bebida e as mulheres que os esperavam naquela noite, depois de um longo dia de trabalho. Não perceberam o olhar discreto que os espreitava de um canto do cais nem a sombra que os acompanhava enquanto adentravam as ruas estreitas da vila portuária Kinsale, ao sul da Irlanda.

Tranquila em dias de paz, mas acostumada à guerra, ela já servira mais de uma vez como palco para batalhas entre protestantes e católicos, conflito ainda longe de terminar. Mas enquanto a invasão não viesse e por mais difícil que fosse a situação, sempre haveria uma maneira de aproveitar a diversão da noite.

Os marinheiros se aproximaram de um dos bares do porto, típicas espeluncas fedendo a peixe, mas antes que pudessem entrar, se viram cercados por um grupo de crianças mendigando pão ou qualquer moeda que tivessem.

 – Saiam daqui, seus fedorentos! Se já podem guinchar assim, já podem trabalhar! – um deles gritou, apontando para uma das meninas com olhar lascivo – Você me procure daqui a uns três anos e te dou um ‘pão’ bem grande, sua putinha!

A garotinha começou a chorar e o grupinho dispersou quando o outro marinheiro bateu o pé no chão com força, como se expulsasse um bando de formigas. Eles não perceberam que havia uma criança de rua a mais passando por ali, que rapidamente se misturou às outras. Eles também demorariam a perceber que todo seu dinheiro desaparecera dos bolsos.

 – Não gastem tudo de uma vez. – em um beco, uma das crianças fazia a partilha das moedas roubadas. Alguns fiapos de cabelo ruivo escapavam da touca esfarrapada, e seus olhos verdes refletiam a seriedade da ocasião. Formando um círculo e com a mão estendida, cada um aguardava sua vez educadamente.

– Quase pensei que você não estava lá. – a garotinha que chorara anteriormente agora mostrava uma expressão muito mais cínica – tive até que ouvir putaria daquele marinheiro. Aposto que ele tem pau pequeno!

– Claro que você não me viu, estava ocupada com sua parte do plano, não é? Se ficasse brisando e as coisas dessem errado, eu mesma enfiava um “pão” em você! E fazia comer depois! – guardou a metade do ganho em seu próprio bolso, enquanto todos riam da conversa suja. A garotinha sorriu mas engoliu em seco, não tendo dúvidas de que a líder faria o que ameaçava caso alguém minguasse o assalto.

 – A Ruiva não vai ter problema em escapar dos ingleses quando eles chegarem. – disse um dos garotos, cutucando o nariz como se quisesse dar uma coçadinha no cérebro.

– Você esqueceu? – outro replicou – Ela vai fugir com eles pra Inglaterra, depois que eles matarem todo mundo aqui.

– Você é protestante, Ruiva??? – um deles se espantou, mas logo depois deu de ombros – Eu devia ter percebido, pelos seus poderes.

– Eu não tenho poderes, idiota! – riu, revirando os olhos – Eu só sou mais rápida e esperta que todos vocês. E eu não sou protestante nem porcaria nenhuma. É só que a Inglaterra é muito maior que aqui... – encostou-se à parede e olhou para o céu, devaneando por alguns instantes.

 – Bem, é melhor a gente ir junto com você, ou vamos voltar a passar fome. – disse a primeira garota, com quem todos concordaram, fazendo a Ruiva rir alto e voltar à realidade.

 – Vocês vão é me atrapalhar. Minha dica é que roubem tudo enquanto o pessoal está ocupado combatendo os ingleses e sendo morto...

Um estouro seguido de um tremor a interrompeu, colocando o grupo em alerta. O segundo estouro não tardou a vir. As pessoas começaram a se juntar na rua em seguida, pois explosões vindas do porto só poderiam significar uma coisa.

– INGLESES! OS INGLESES ESTÃO CHEGANDO!

– JÁ ROMPERAM O FORTE CHARLES!

– ESTAMOS SENDO INVADIDOS!

O corpo da Ruiva tremia e seu coração disparava, mas a última coisa que sentia era medo. Imediatamente tomou a direção portuária, seguida pelas poucas crianças mais impetuosas que não preferiram se esconder ou seguir o conselho dado por ela.

Gritos de terror, clamores de liberdade e orações raivosas se espalhavam pela vila, como faíscas em um barril entupido de pólvora. Em questão de minutos a Ruiva deixou os amigos para trás e chegou às docas, usando ao máximo seu conhecimento das ruas e sua velocidade. Mas, ao avistar três grandes navios, imaginou se havia alguma coisa errada com a situação ou com sua memória.

– Ué... a bandeira da Inglaterra era preta e tinha uma caveira?

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Rota para Cingapura - Parte I

Uma brisa suave serpenteia pelas ruas, edifícios e canais, amainando o dia quente de verão e ao mesmo tempo trazendo sinais de uma possível tempestade. As gôndolas balançam tranquilamente na superfície das águas, transportando casais apaixonados, ricos comerciantes e visitantes diversos da Sereníssima República de Veneza. Embora os dias de glória tivessem minguado graças à expansão das navegações portuguesas e espanholas, a cidade continuava uma respeitável joia de arte e encanto nesse início de século XVIII.

Uma das embarcações tradicionais trazia uma figura que pouca importância parecia dar ao sol – ao menos era essa impressão causada pela longa túnica roxa escura e pelo capuz puxado sobre a cabeça, mesclando a vestimenta à cor negra tradicional do veículo fluvial.

– À frente, a Ponte de Rialto. – pronunciou-se o gondoleiro, o rosto oculto pelo chapéu de abas largas e a vestimenta pesada destoando do tom de voz suave e da posição que ocupava no pequeno espaço da borda da gôndola, gracioso como um canário do reino.

– O que mais temos nessa cidade são pontes. – a passageira respondeu com ironia comedida na voz arrastada.

– Me pergunto o que pode haver de mais encantador em Veneza do que as pontes, os canais sob elas e, claro, o Carnaval, milady. sem sinal de aborrecimento, o condutor replicou ao passarem sob o ponto menos iluminado do arco da Ponte.

– Me diga você, pois aqui cheguei há pouco... vinda pelo Adriático.

Como se recebesse um sinal, o gondoleiro imediatamente alterou o curso do barco para uma área de menor tráfego. Levantando a cabeça levemente para a cliente, deixou à vista metade do rosto feminino, onde uma cicatriz de queimadura destacava-se abaixo de um inquiridor olho direito.A mulher sentada soltou uma risadinha abafada, parecendo ter encontrado o que procurava.

– Esta sim é a Veneza que eu gostaria de ver. Não foi fácil te achar, sabia? Gastei um bom ouro até chegar a um tal de gondoleiro fantasma... – puxou para trás o capuz, revelando o rosto redondo emoldurado por cabelos curtos cor de palha. Uma bandagem amarelada cobria o olho esquerdo, conferindo um aspecto levemente doente à fisionomia.

– E qual é o seu negócio, dona? Ouro, ópio, mulheres... – um sorriso rasgou-se no rosto da mulher em pé – Que sujeira quer que eu enfie entre as pernas da Sereníssima?

– Por favor, que linguajar. – juntou as mãos, simulando recato – Realmente, o mar não a deixará jamais, não importa quanto tempo fique entocada em uma lagoa.

– Engraçado dizer isso, pois senti o seu fedor de água salgada zanzando pela beira do canal muito antes de entrar em minha gôndola. Ou está imaginando que apareci tão rápido por que talvez você tenha muita sorte? Diga logo o que quer comigo, não tenho o dia inteiro.

– Ouvi histórias sobre você, capitã. Histórias em Cingapura.

– Por lá ainda cospem no chão e anseiam em ver todos os meus dedos enfeitados com farpas de bambu? – zombou, deixando transparecer certo orgulho – Reconheço que você foi um bocado longe, e gosto disso; melhor que as histórias da Espanha...

– O que aconteceu em Madri é notícia velha na Europa, assim como o naufrágio que fez a Tubarão Branco desaparecer como se nunca tivesse existido.

– Se você perguntar sobre isso, ganha uma passeio grátis pelo exuberante fundo do Grande Canal. Aqui e agora.

– Não me olhe assim! – riu, levantando a mão em gesto de paz – Não sou como os espanhóis e ingleses, que só sabem fazer perguntas erradas e não deram atenção à única coisa interessante da história toda. Afinal, não é todo dia que vemos um junco chinês aterrorizando os mares desse lado do mundo, e provavelmente não veremos de novo.

– Não sei o que um navio queimado há mais de três anos poderia ter de interessante... – disse cuidadosamente, medindo as intenções da conversa.

– Eu acredito – inclinou-se em tom de confidência – que navios interessantes têm tripulantes mais interessantes ainda. Por que não trocamos algumas ideias sobre isso? – em um movimento leve, um rubi medindo quase um palmo surgiu discretamente em sua mão, acendendo uma faísca característica na pupila bem treinada da pirata. Satisfeita pela reação causada, a visitante continuou seu raciocínio.

– Pelas minhas contas, isso seria o suficiente para o peixe de água doce migrar para o oceano novamente e não mais depender de atravessadores locais para exercer suas atividades... ou você já pretende se aposentar?

A gondoleira tamborilou os dedos pelo cabo do remo por alguns instantes, resmungou algo pra si mesma e por fim voltou-se à outra com a expressão de uma negociante satisfeita.

– Você é bastante intrometida... mas até que sabe argumentar com piratas. – ajeitou o chapéu discretamente e tornou a impulsionar a gôndola para frente – Acho que não tem problema relembrar algumas histórias antigas até o passeio terminar... já está pago mesmo.

A gôndola deixou para trás a Ponte de Rialto e continuou a navegar sem pressa.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Metamomento I

Hoje eu planejava postar algumas coisas triviais sobre o blog e o fim dos primeiros contos postados aqui, mas vejo que isso pode esperar. Tem algumas coisas meio tensas, mais tensas do que o usual, acontecendo na esfera das pessoas cuja maior função é escrever - ou ao menos deveria ser, e por isso sinto que posso deixar meus dois centavos sobre isso, nem que seja para registro.

Sabe, o que o Raphael Draccon acha que um escritor precisa ser ou o que o Paulo Coelho não gostou em Frankfurt não são coisas que me preocupam tanto assim. Mas já essa questão de restrições ao trabalho dos biógrafos... depois de me informar sobre ela, me preocupou um pouco mais. E a outras pessoas também.

Eu não sou desse ramo e provavelmente nunca serei (apesar que, vida, vai saber), mas a partir do momento em que surgem argumentos furados e generalizantes sustentando mais proibições (mais!), qualquer escritor tem motivos pra ficar de orelhas, olhos e cérebro atentos. Fora que, em um mundo onde a informação flui cada vez mais facilmente e o desejo das pessoas por elas aumenta, isso me parece um baita retrocesso.

Não acredito que o problema seja o "dinheiro", o "mercado". Eu tenho interesse em capitalizar minhas criações, para que elas se sustentem sem depender de "sorte" e "genialidade", conceitos tão instáveis e desestimulantes para mim. Romantismo, nenhum tipo, combina comigo.

O problema pra mim é usar o dinheiro de forma burra, retrógrada, capitalista-do-século-XX (sai pra lá!) e como desculpa escusa para minar a liberdade alheia. Tratar um biógrafo como golpista é uma atitude na melhor das hipóteses burra e na pior de uma tremenda má-fé.

Gente.

Vamos parar de generalizar tudo.

Vamos parar de acusar os outros antes de qualquer coisa ter acontecido.

Vamos parar de usar o dinheiro como o botão vermelho da bomba nuclear.

Vamos parar de usar leis pra castrar nossa humanidade.

Vamos conversar mais. Fazer mais acordos. Dar atenção ao detalhes de cada situação. Pensar.

Vamos parar de burrice.

Por mais que eu não costume tratar do 'mundo real' nas minhas histórias, digo tudo isso porque não quero ver a realidade destruindo todos os meus mundos imaginários (que dão um trabalho parir!) por causa de uma eventual burrice alheia.

Só isso.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O Médico Real - XI

CORREIO DA MANHÃ
Londres, 14 de agosto de 1728

CIRURGIÃO ENCONTRADO MORTO EM CIRCUNSTÂNCIAS MISTERIOSAS

Charles Atkins, médico cirurgião a serviço Real, foi encontrado morto ao raiar do dia pelos primeiros marinheiros que chegaram ao porto. Atraídos pelo número exagerado de ratos nas ruínas de um navio (que aguarda parecer oficial para ser definitivamente destruído), deram com o cadáver do pobre cirurgião.Todas as evidências apontam para o suicídio, apesar do baú e do mapa encontrado em seu bolso serem objetos suspeito.

O caso de Charles Atkins ficou conhecido há alguns anos, quando foi o responsável pela captura e morte do bando de piratas pelo qual foi sequestrado. Astutamente utilizou sua inteligência a favor do bem e da justiça, enganando os brutos e os guiando para navios da Marinha de onde não podiam escapar. Atkins atuou honradamente no tribunal garantindo o enforcamento de todo o grupo do terrível Capitão Mortimer, conseguindo assim um merecido perdão real e a possibilidade de exercer sua profissão dignamente em prol da Nação.

Este é um mistério que a Justiça se empenhará em solucionar, dadas as circunstâncias misteriosas e da dúvida se existem crimes envolvidos. A essa hora, uma perícia está sendo realizada na residência do médico.

~*~

Maldição de Low, mil vezes! O velho Phill não consegue fazer isso sozinho...

Sentado em um barril, o pirata perneta tentava desajeitadamente recolocar sua prótese rústica e apodrecida, indiferente à cantoria dos esqueletos ao redor e a procissão da Rainha e suas crianças. Mas a um certo momento, algo pareceu chamar sua atenção o suficiente para desviar-se da tarefa. Abriu um sorriso largo de dentes falhos ao ver quem se aproximava.

– Ah! Olha só quem chegou bem na hora!
 
 Um homem em vestes de pirata puídas e rasgadas, cabelos pretos longos presos em um laço e expressão vazia no rosto encovado parou em frente a Phill, segurando um bisturi enferrujado.

– Eu demorei um pouco mais que outros... mas estou aqui.

– Bem vindo a Londres, cirurgião! O velho Phill está precisando de você! Bwahuahua!

As cantigas piratas continuaram para sempre, perdendo-se no horizonte.

FIM 



quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Magellan VII – Parte XI

O silêncio imperou por alguns momentos, impassível. Kari aguardava a resposta dos líderes, e seus olhos deixavam claro que, dependendo de qual fosse, estava disposta a cometer uma ou duas loucuras. Entretanto, as palavras suaves de Tahina foram suficientes para amainar suas defesas.

– Contamos com você e Atlas para ajudar Ymir. E os outros que conseguimos resgatar.

– Atlas... voltou?

– Não, mas nós o encontraremos. Pouco mais de trezentas pessoas chegaram aqui, entretanto as condições têm piorado a cada dia. Acreditamos que seja hora de partir para Selene.

– Para a Lua...? E abandonar todo o resto do mundo...?      

– Fomos muito ambiciosos, não é? – Alva olhou para Kari com pesar – Pensamos que tudo estava bem na Terra e poderíamos alçar o universo... mas fomos subjugados por nossa própria natureza adormecida, bastando uma pedrinha no lago para as ondas se espalharem infinitamente... sim, tudo que podemos fazer é fugir e observar nossos erros. Erros que insistimos em enterrar sob nosso orgulho e por isso retornam agora com toda a força.

– Não se martirize, Alva. – Tahina interveio – Talvez não estivéssemos prontos para um passo tão grande, mas a Humanidade se recuperará.

– Imagino quais marcas restarão em sua essência após perderem todo o conhecimento dos milênios vividos...

– Marcas que evitarão os mesmos erros de seus antepassados. E estaremos observando da Lua, ajudando-os no que puderem para que não atrasem demais sua evolução. Mas antes essa Humanidade ainda regredirá completamente. É triste, mas tudo sobre a Terra se renova no tempo certo.

– No fim, não somos diferentes dos troncos de árvores sendo arrastados pela correnteza. Na verdade, eles conservam suas memórias seculares muito melhor do que nós.

– Quem sabe a humanidade que nos substituirá mude nisso.

Kari respirou longamente, atordoada com tantas informações e verdades terríveis. Sentia-se tão suja quanto o adolescente que perdera a família e decidira vingar-se do mundo, pois seu cérebro estava sujeito exatamente aos mesmos mecanismos. Sua fé pode tê-la impedido de sair demais da estrada, mas ela sabia a extensão de sua fragilidade. Alva e Tahina tinham razão, não havia escolha para ela ou para o mundo.

Deixe-me ficar com ele.

Dione assentiu e Kari entrou na sala onde o amor de sua vida dormia. Sentou-se com a cabeça dele em seu colo e chorou livremente. Mas apesar da dor, sabia que, acima de tudo, o fato de estarem juntos os salvara da decadência completa.

– Tudo que podemos fazer é recomeçar. E olhe só, chegaremos a tempo para o centenário de Selene... e celebrá-lo com seu irmão...  não é, Sr. Ymir Kaftari-Garin?

Três dias depois, a população do Endeavour partiu deixando para trás uma Humanidade deformada e autodestrutiva, que levaria eras para se reerguer das cinzas. Tempo suficiente para que os continentes se separassem e os fragmentos de um futuro perdido tomassem forma de Atlântidas, Édens, alienígenas ultratecnológicos e quaisquer metáforas que os homens pudessem imaginar para representar o obsessivo tema da extinção humana. Observando pacientemente do lado escuro da Lua, os antepassados-sobreviventes esperam que a Humanidade enxergue o potencial de sua natureza interior como um agente de extermínio mais letal do que qualquer ameaça externa e fantástica.

FIM