quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Rota para Cingapura - Parte III

“Não são os ingleses.” “Piratas.” “Piratas estão atacando.”
 
Os brados que chegavam aos ouvidos da Ruiva serviam como música de fundo da visão mais incrível que já testemunhara. Três grandes naus saudavam o porto com tiros de canhão, destacando-se as velas vermelhas e o avantajado casco esguio da maior delas, diferente de qualquer outro navio que já tivesse aportado naquela parte do mundo. Se isso era capaz de surpreender um marinheiro experiente, quem dirá uma criança que nunca saíra de sua vila de pescadores.

Os piratas saltaram em terra como uma nuvem de gafanhotos sanguinários, fazendo os até então orgulhosos rebeldes se verem impotentes perante uma emergência mais real e verdadeira que qualquer boato sobre ingleses de presas e garras afiadas. Alguns clamavam pela ausente marinha do próprio país e outros apelavam em vão a Deus, mas a maioria não teve muito tempo para lamentações. O fio da espada dos invasores era eficiente e letal.

Alheia ao caos e a matança, a Ruiva continuava fascinada pelo grande navio cuspidor de guerreiros. Esquecera a fome, os amigos e até as moedas que estariam rolando dos bolsos dos caídos, sentindo-se irresistivelmente atraída pelas formas extravagantes da embarcação. Um pensamento sacudiu-se em seu coração e traduziu-se em um sorriso ganancioso.

– Deve ser ainda melhor por dentro.

Chegou a ensaiar dois passos para frente, mas o mundo real atrapalhou seu ímpeto. Uma onda seguida de uma explosão particularmente grande atingiu o local onde ela estava, jogando-a para longe da fortaleza vermelha. A água fria e o susto foram suficientes para quebrar seu estado de encantamento, a batalha ao redor pareceu grande demais e, pela primeira vez em muito tempo, sentiu-se pequena como a criança que era. Seus seguidores ficariam desapontados em vê-la correndo e gritando para dentro da cidade como um ratinho, mas eles também estariam tão ocupados quanto ela em sobreviver.

– Sobreviver. Eu só preciso sobreviver.

Os primeiros incêndios começavam a se alastrar pela cidade, junto às risadas cínicas dos saqueadores e aos gritos da população. Janelas e portas batiam, fechando-se com violência. Uma grande quantidade de pessoas se amontoava desesperada na porta da construção mais forte da vila, a igreja, onde o mesmo padre que chutava os órfãos famintos quase diariamente agora se trancava sozinho no confessionário, argumentando consigo mesmo que os pecadores não deveriam entrar. A justiça divina o salvaria, ele não tinha culpa de nada. Mas rezaria por todos em sua generosidade.

Ao ver isso, a Ruiva se lembrou de algo muito importante. Ninguém salvaria ninguém, ninguém faria como o Cristo que tanto louvavam diariamente. Correr feito uma bala perdida não a salvaria, mas sim o contra-ataque.

– Não está tão diferente do que sempre foi. É só mais barulhento, e tem mais concorrência.

Vivera até ali aproveitando as oportunidades entre os vãos e vielas da sociedade e não havia razão para agir diferente. Apressou-se para o lado das melhores casas, imaginando que os piratas não chegariam lá antes dela se assim quisesse – afinal, era seu território. Sua previsão estava certa, e não demorou a juntar tudo que pudesse carregar de comida e pertences de uma casa vazia. Lamentava apenas que não encontrasse sinal de nenhum amigo.

– Parece que ninguém conseguiu chegar aqui... espero que estejam se virando... é melhor eu ir embora depressa, antes que os piratas apareçam.

Entretanto, gritos e sons de lâminas se chocando na rua ameaçavam que podia ser tarde demais pra escapar com segurança. A Ruiva abriu cuidadosamente uma fresta da porta para avaliar a situação e viu um pirata alto e forte, de barba escura, vestindo um pomposo manto azul que o destacava dos outros saqueadores. Ele enfrentava o chefe da polícia da cidade em um duelo que parecia equilibrado.

Ela teria aproveitado a chance de escapar enquanto eles estavam ocupados se não tivesse visto a pistola do policial caída na frente da casa, quase aos seus pés. Esse momento de hesitação foi suficiente para ser notada.

– Garotinha! Me dê essa arma aqui!

O policial gritava para ela, que levantou o rosto e encontrou o pirata dominado, o sabre apontado pra sua garganta e a espada caída longe. Apesar disso, sua expressão era tranquila até demais, diferente do afoito guarda. Ele ficou ainda mais ansioso quando a Ruiva esgueirou-se pela porta e pegou desajeitadamente a pesada arma. Ela se aproximou lentamente deles, ensaiando apontar a pistola com as duas mãos. Uma expressão confusa se formou na face do policial e o sorriso do pirata pareceu expandir-se discretamente. A garota começou a tremer pelo esforço e pelas lembranças que vinham a sua mente.

Lembranças de todas as vezes em que aquele homem da lei e seus subordinados perseguiram, surraram e até causaram a morte de amigos e conhecidos seus, a ponto de acabarem mais temidos e evitados do que as gangues rivais. Lembranças das pessoas de bem que os chamavam para expulsar os órfãos fedorentos da porta de suas casas. E muitas outras, incontáveis memórias que nunca a deixaram realmente em paz.

Entre elas, pairava a única certeza que a guiara na vida: o contra-ataque a salvaria.

A dor e a humilhação guardadas pesavam muito mais que o gatilho, do qual saiu uma bala carregada de pólvora e lembranças.

2 comentários:

  1. Nunca maltrate uma garotinha órfã...um dia ela pode ter uma arma...e um fascínio por piratas! rsrsrsrs
    E lá vamos nós esperar pelo próximo capítulo....longa espera...rsrsrs

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  2. Saudações


    Deveras intrigante, nobre...
    No aguardo da sequência.^^


    Até mais!

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