quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Rota para Cingapura - Parte II

O crepúsculo avermelhado contrastava com a superfície azul do mar e as gaivotas sobrevoavam calmamente os barcos de pesca que voltavam ao porto. A paisagem pacata transmitia uma sensação de paz, mas bastava um fragmento de prosa miúda entre os marinheiros para essa sensação estremecer.

– Dizem que os ingleses vão atacar a qualquer momento.

– Sim, até tem gente que diz que eles já estão a caminho. Mas seja como for, vão comer chumbo pelo rabo!

– Com certeza, pois Deus está do nosso lado! A Irlanda ficará livre desses porcos protestantes!

Cuspiram no chão com desprezo, mudando em seguida o assunto para a bebida e as mulheres que os esperavam naquela noite, depois de um longo dia de trabalho. Não perceberam o olhar discreto que os espreitava de um canto do cais nem a sombra que os acompanhava enquanto adentravam as ruas estreitas da vila portuária Kinsale, ao sul da Irlanda.

Tranquila em dias de paz, mas acostumada à guerra, ela já servira mais de uma vez como palco para batalhas entre protestantes e católicos, conflito ainda longe de terminar. Mas enquanto a invasão não viesse e por mais difícil que fosse a situação, sempre haveria uma maneira de aproveitar a diversão da noite.

Os marinheiros se aproximaram de um dos bares do porto, típicas espeluncas fedendo a peixe, mas antes que pudessem entrar, se viram cercados por um grupo de crianças mendigando pão ou qualquer moeda que tivessem.

 – Saiam daqui, seus fedorentos! Se já podem guinchar assim, já podem trabalhar! – um deles gritou, apontando para uma das meninas com olhar lascivo – Você me procure daqui a uns três anos e te dou um ‘pão’ bem grande, sua putinha!

A garotinha começou a chorar e o grupinho dispersou quando o outro marinheiro bateu o pé no chão com força, como se expulsasse um bando de formigas. Eles não perceberam que havia uma criança de rua a mais passando por ali, que rapidamente se misturou às outras. Eles também demorariam a perceber que todo seu dinheiro desaparecera dos bolsos.

 – Não gastem tudo de uma vez. – em um beco, uma das crianças fazia a partilha das moedas roubadas. Alguns fiapos de cabelo ruivo escapavam da touca esfarrapada, e seus olhos verdes refletiam a seriedade da ocasião. Formando um círculo e com a mão estendida, cada um aguardava sua vez educadamente.

– Quase pensei que você não estava lá. – a garotinha que chorara anteriormente agora mostrava uma expressão muito mais cínica – tive até que ouvir putaria daquele marinheiro. Aposto que ele tem pau pequeno!

– Claro que você não me viu, estava ocupada com sua parte do plano, não é? Se ficasse brisando e as coisas dessem errado, eu mesma enfiava um “pão” em você! E fazia comer depois! – guardou a metade do ganho em seu próprio bolso, enquanto todos riam da conversa suja. A garotinha sorriu mas engoliu em seco, não tendo dúvidas de que a líder faria o que ameaçava caso alguém minguasse o assalto.

 – A Ruiva não vai ter problema em escapar dos ingleses quando eles chegarem. – disse um dos garotos, cutucando o nariz como se quisesse dar uma coçadinha no cérebro.

– Você esqueceu? – outro replicou – Ela vai fugir com eles pra Inglaterra, depois que eles matarem todo mundo aqui.

– Você é protestante, Ruiva??? – um deles se espantou, mas logo depois deu de ombros – Eu devia ter percebido, pelos seus poderes.

– Eu não tenho poderes, idiota! – riu, revirando os olhos – Eu só sou mais rápida e esperta que todos vocês. E eu não sou protestante nem porcaria nenhuma. É só que a Inglaterra é muito maior que aqui... – encostou-se à parede e olhou para o céu, devaneando por alguns instantes.

 – Bem, é melhor a gente ir junto com você, ou vamos voltar a passar fome. – disse a primeira garota, com quem todos concordaram, fazendo a Ruiva rir alto e voltar à realidade.

 – Vocês vão é me atrapalhar. Minha dica é que roubem tudo enquanto o pessoal está ocupado combatendo os ingleses e sendo morto...

Um estouro seguido de um tremor a interrompeu, colocando o grupo em alerta. O segundo estouro não tardou a vir. As pessoas começaram a se juntar na rua em seguida, pois explosões vindas do porto só poderiam significar uma coisa.

– INGLESES! OS INGLESES ESTÃO CHEGANDO!

– JÁ ROMPERAM O FORTE CHARLES!

– ESTAMOS SENDO INVADIDOS!

O corpo da Ruiva tremia e seu coração disparava, mas a última coisa que sentia era medo. Imediatamente tomou a direção portuária, seguida pelas poucas crianças mais impetuosas que não preferiram se esconder ou seguir o conselho dado por ela.

Gritos de terror, clamores de liberdade e orações raivosas se espalhavam pela vila, como faíscas em um barril entupido de pólvora. Em questão de minutos a Ruiva deixou os amigos para trás e chegou às docas, usando ao máximo seu conhecimento das ruas e sua velocidade. Mas, ao avistar três grandes navios, imaginou se havia alguma coisa errada com a situação ou com sua memória.

– Ué... a bandeira da Inglaterra era preta e tinha uma caveira?

2 comentários:

  1. Saudações


    Um pouco de história, uma pitada de segmentação cultural e...
    Aí está mais um capítulo de sua história, nobre Ana. =)

    E... Piratas haverão de aparecer novamente.


    Até mais!

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  2. Bandeira da Inglaterra preta e com caveira?Até q não seria tão impossível...huahuahuahua.... e uma garrafa de run!!!Piratas...piratas e ...piratas!!Essa história É de bandeiras pretas e caveira!!\o/\o/
    Muito bom filha....!
    Á espera do próximo episódio....!!! ;)

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