Uma brisa
suave serpenteia pelas ruas, edifícios e canais,
amainando o dia quente de verão e ao mesmo tempo trazendo sinais de
uma possível tempestade. As gôndolas balançam tranquilamente na
superfície das águas, transportando casais apaixonados, ricos
comerciantes e visitantes diversos da Sereníssima República de
Veneza. Embora os dias de glória tivessem minguado graças à expansão das navegações portuguesas e
espanholas, a cidade continuava uma respeitável joia de arte e
encanto nesse início de século XVIII.
Uma das embarcações tradicionais trazia uma figura que
pouca importância parecia dar ao sol – ao menos era essa impressão
causada pela longa túnica roxa escura e pelo capuz puxado sobre a
cabeça, mesclando a vestimenta à cor negra tradicional do veículo fluvial.
– À
frente, a Ponte de Rialto. – pronunciou-se o gondoleiro, o rosto oculto pelo chapéu de abas largas e a vestimenta pesada destoando do tom de voz suave e da posição que
ocupava no pequeno espaço da borda da gôndola, gracioso como um canário do reino.
– O que
mais temos nessa cidade são pontes. – a passageira respondeu com
ironia comedida na voz arrastada.
– Me
pergunto o que pode haver de mais encantador em Veneza do que as
pontes, os canais sob elas e, claro, o Carnaval, milady. – sem sinal de aborrecimento, o
condutor replicou ao passarem sob o ponto menos iluminado do
arco da Ponte.
– Me
diga você, pois aqui cheguei há pouco... vinda pelo Adriático.
Como se
recebesse um sinal, o gondoleiro imediatamente alterou o curso do
barco para uma área de menor tráfego. Levantando a cabeça levemente
para a cliente, deixou à vista metade do rosto feminino, onde uma cicatriz de queimadura destacava-se abaixo de um inquiridor olho
direito.A mulher sentada soltou uma risadinha abafada, parecendo ter encontrado o que procurava.
– Esta
sim é a Veneza que eu gostaria de ver. Não foi fácil te achar,
sabia? Gastei um bom ouro até chegar a um tal de gondoleiro
fantasma... – puxou
para trás o capuz, revelando o rosto redondo emoldurado por cabelos
curtos cor de palha. Uma bandagem amarelada cobria o olho esquerdo, conferindo um aspecto levemente doente à fisionomia.
– E
qual é o seu negócio, dona? Ouro, ópio, mulheres... – um sorriso
rasgou-se no rosto da mulher em pé – Que sujeira quer que eu enfie
entre as pernas da Sereníssima?
– Por
favor, que linguajar. – juntou as mãos, simulando recato –
Realmente, o mar não a deixará jamais, não importa quanto tempo fique entocada em uma lagoa.
–
Engraçado dizer isso, pois senti o seu fedor de água salgada
zanzando pela beira do canal muito antes de entrar em minha gôndola.
Ou está imaginando que apareci tão rápido por que talvez você
tenha muita sorte? Diga logo o que quer comigo, não tenho o dia
inteiro.
– Ouvi
histórias sobre você, capitã. Histórias em Cingapura.
– Por lá
ainda cospem no chão e anseiam em ver todos os meus dedos enfeitados
com farpas de bambu? – zombou, deixando transparecer certo orgulho
– Reconheço que você foi um bocado longe, e gosto disso; melhor que as
histórias da Espanha...
– O que
aconteceu em Madri é notícia velha na Europa, assim como o
naufrágio que fez a Tubarão Branco desaparecer como se nunca
tivesse existido.
– Se
você perguntar sobre isso, ganha uma passeio grátis pelo exuberante
fundo do Grande Canal. Aqui e agora.
– Não
me olhe assim! – riu, levantando a mão em gesto de paz – Não
sou como os espanhóis e ingleses, que só sabem fazer perguntas
erradas e não deram atenção à única coisa interessante da
história toda. Afinal, não é todo dia que vemos um junco chinês
aterrorizando os mares desse lado do mundo, e provavelmente não
veremos de novo.
– Não
sei o que um navio queimado há mais de três anos poderia ter de
interessante... – disse cuidadosamente, medindo as intenções da conversa.
– Eu
acredito – inclinou-se em tom de confidência – que navios interessantes têm tripulantes mais interessantes ainda. Por que não trocamos algumas ideias sobre isso? – em um movimento leve, um rubi medindo
quase um palmo surgiu discretamente em sua mão, acendendo uma faísca característica na pupila
bem treinada da pirata. Satisfeita pela reação causada, a visitante continuou seu raciocínio.
– Pelas
minhas contas, isso seria o suficiente para o peixe de água doce
migrar para o oceano novamente e não mais depender de atravessadores
locais para exercer suas atividades... ou você já pretende se
aposentar?
A gondoleira tamborilou os dedos pelo cabo do remo por alguns instantes, resmungou algo pra si mesma e por fim voltou-se à outra com a expressão de uma negociante satisfeita.
– Você é bastante intrometida... mas até que sabe argumentar com piratas. – ajeitou o chapéu discretamente e tornou a impulsionar a gôndola para frente – Acho que não tem problema relembrar algumas histórias antigas até o passeio terminar... já está pago mesmo.
A gondoleira tamborilou os dedos pelo cabo do remo por alguns instantes, resmungou algo pra si mesma e por fim voltou-se à outra com a expressão de uma negociante satisfeita.
– Você é bastante intrometida... mas até que sabe argumentar com piratas. – ajeitou o chapéu discretamente e tornou a impulsionar a gôndola para frente – Acho que não tem problema relembrar algumas histórias antigas até o passeio terminar... já está pago mesmo.
Saudações
ResponderExcluirNavios, água, o Mar Mediterrâneo, a velha Europa...
Uma vez mais, tais características servirão e inspiração para ti, Ana.
E apenas ressaltando algo importante: foi um ótimo prólogo este de seu novo conto.
Mais aventuras à vista.
Até mais!
História de pirata á vista,comandante!hehehe...e piratas mulheres...chinesa...esse conto promete muitas aventuras!
ResponderExcluirE lá vamos nós! ;)
Gostei dos diálogos.
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