quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Rota para Cingapura - Parte I

Uma brisa suave serpenteia pelas ruas, edifícios e canais, amainando o dia quente de verão e ao mesmo tempo trazendo sinais de uma possível tempestade. As gôndolas balançam tranquilamente na superfície das águas, transportando casais apaixonados, ricos comerciantes e visitantes diversos da Sereníssima República de Veneza. Embora os dias de glória tivessem minguado graças à expansão das navegações portuguesas e espanholas, a cidade continuava uma respeitável joia de arte e encanto nesse início de século XVIII.

Uma das embarcações tradicionais trazia uma figura que pouca importância parecia dar ao sol – ao menos era essa impressão causada pela longa túnica roxa escura e pelo capuz puxado sobre a cabeça, mesclando a vestimenta à cor negra tradicional do veículo fluvial.

– À frente, a Ponte de Rialto. – pronunciou-se o gondoleiro, o rosto oculto pelo chapéu de abas largas e a vestimenta pesada destoando do tom de voz suave e da posição que ocupava no pequeno espaço da borda da gôndola, gracioso como um canário do reino.

– O que mais temos nessa cidade são pontes. – a passageira respondeu com ironia comedida na voz arrastada.

– Me pergunto o que pode haver de mais encantador em Veneza do que as pontes, os canais sob elas e, claro, o Carnaval, milady. sem sinal de aborrecimento, o condutor replicou ao passarem sob o ponto menos iluminado do arco da Ponte.

– Me diga você, pois aqui cheguei há pouco... vinda pelo Adriático.

Como se recebesse um sinal, o gondoleiro imediatamente alterou o curso do barco para uma área de menor tráfego. Levantando a cabeça levemente para a cliente, deixou à vista metade do rosto feminino, onde uma cicatriz de queimadura destacava-se abaixo de um inquiridor olho direito.A mulher sentada soltou uma risadinha abafada, parecendo ter encontrado o que procurava.

– Esta sim é a Veneza que eu gostaria de ver. Não foi fácil te achar, sabia? Gastei um bom ouro até chegar a um tal de gondoleiro fantasma... – puxou para trás o capuz, revelando o rosto redondo emoldurado por cabelos curtos cor de palha. Uma bandagem amarelada cobria o olho esquerdo, conferindo um aspecto levemente doente à fisionomia.

– E qual é o seu negócio, dona? Ouro, ópio, mulheres... – um sorriso rasgou-se no rosto da mulher em pé – Que sujeira quer que eu enfie entre as pernas da Sereníssima?

– Por favor, que linguajar. – juntou as mãos, simulando recato – Realmente, o mar não a deixará jamais, não importa quanto tempo fique entocada em uma lagoa.

– Engraçado dizer isso, pois senti o seu fedor de água salgada zanzando pela beira do canal muito antes de entrar em minha gôndola. Ou está imaginando que apareci tão rápido por que talvez você tenha muita sorte? Diga logo o que quer comigo, não tenho o dia inteiro.

– Ouvi histórias sobre você, capitã. Histórias em Cingapura.

– Por lá ainda cospem no chão e anseiam em ver todos os meus dedos enfeitados com farpas de bambu? – zombou, deixando transparecer certo orgulho – Reconheço que você foi um bocado longe, e gosto disso; melhor que as histórias da Espanha...

– O que aconteceu em Madri é notícia velha na Europa, assim como o naufrágio que fez a Tubarão Branco desaparecer como se nunca tivesse existido.

– Se você perguntar sobre isso, ganha uma passeio grátis pelo exuberante fundo do Grande Canal. Aqui e agora.

– Não me olhe assim! – riu, levantando a mão em gesto de paz – Não sou como os espanhóis e ingleses, que só sabem fazer perguntas erradas e não deram atenção à única coisa interessante da história toda. Afinal, não é todo dia que vemos um junco chinês aterrorizando os mares desse lado do mundo, e provavelmente não veremos de novo.

– Não sei o que um navio queimado há mais de três anos poderia ter de interessante... – disse cuidadosamente, medindo as intenções da conversa.

– Eu acredito – inclinou-se em tom de confidência – que navios interessantes têm tripulantes mais interessantes ainda. Por que não trocamos algumas ideias sobre isso? – em um movimento leve, um rubi medindo quase um palmo surgiu discretamente em sua mão, acendendo uma faísca característica na pupila bem treinada da pirata. Satisfeita pela reação causada, a visitante continuou seu raciocínio.

– Pelas minhas contas, isso seria o suficiente para o peixe de água doce migrar para o oceano novamente e não mais depender de atravessadores locais para exercer suas atividades... ou você já pretende se aposentar?

A gondoleira tamborilou os dedos pelo cabo do remo por alguns instantes, resmungou algo pra si mesma e por fim voltou-se à outra com a expressão de uma negociante satisfeita.

– Você é bastante intrometida... mas até que sabe argumentar com piratas. – ajeitou o chapéu discretamente e tornou a impulsionar a gôndola para frente – Acho que não tem problema relembrar algumas histórias antigas até o passeio terminar... já está pago mesmo.

A gôndola deixou para trás a Ponte de Rialto e continuou a navegar sem pressa.

3 comentários:

  1. Saudações


    Navios, água, o Mar Mediterrâneo, a velha Europa...
    Uma vez mais, tais características servirão e inspiração para ti, Ana.

    E apenas ressaltando algo importante: foi um ótimo prólogo este de seu novo conto.
    Mais aventuras à vista.


    Até mais!

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  2. História de pirata á vista,comandante!hehehe...e piratas mulheres...chinesa...esse conto promete muitas aventuras!
    E lá vamos nós! ;)

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