Ano 3115 CH – Ciclo
14 – Semana 1
Em um estabelecimento discreto de uma
pequena cidade, um casal tomava café silenciosamente na mesa da
janela, de onde podiam ver sua U.M. estacionada. Kari falava baixo a
um aparelho enquanto Ymir prestava atenção nas notícias ao vivo de
Laurásia, a maior cidade do país, e perdia a fome repentinamente.
– Sim, Dione, nós estamos bem... oi?
Está me ouvindo? Como disse, estamos indo o mais rápido possível,
mas muitas vias de circulação estão bloqueadas ou perigosas
demais...
Hoje cedo, em pleno centro da
cidade, o projetista Nero C. Ewetard atropelou um pedestre, depois
identificado como seu vizinho, esmagando-o contra a parede de um
edifício deliberadamente...
– Sim, estamos indo pela rota da
Laurásia. E você, como está...? Eu perguntei, como está? Entendo.
Entrarei em contato de novo. Sim, tomaremos cuidado. Te amo, irmã.
Logo nos veremos. – ela desligou o comunicador e segurou as duas mãos
de Ymir, olhando para o telão – continua se espalhando...
– Está cada vez pior. Ao menos sua
irmã está bem, pelo que ouvi.
– Sim, o Centro Espacial Endeavour é
o mais afastado e seguro do continente... estão isolados lá, mas
ela já garantiu que nos aceitarão quando chegarmos. – ela suspirou,
rezando consigo mesma para que a irmã continuasse em segurança e
que eles fossem capazes de alcançá-la.
– O que será que Jano... tinha pra
nos dizer...? – ele comentou distraidamente, como fazia às vezes,
olhando para a Unidade Especial estacionada que já tinha salvo as
vidas deles mais de uma vez naquele curto período de tempo.
Kari não respondeu. As olheiras de
Ymir pioravam a cada dia pela preocupação e pesadelos com seus
amigos astronautas que tiveram fins terríveis um seguido do outro.
Por conta disso, ela estava alerta o tempo todo, sabendo que a
loucura incubara-se no coração dele também. Não podia deixar que
caíssem naquele abismo desconhecido de raiva irracional.
– Talvez seja melhor evitarmos com
mais afinco as notícias e rumores. Minha cabeça tem piorado com
elas. – ele completou, como se concordasse com os pensamentos dela.
– É verdade. Vamos nos concentrar no
nosso objetivo.
E agora o líder espiritual Dalai
Lama transmitirá uma mensagem de paz e compreensão para toda a
humanidade neste momento crítico.
As notícias traziam agora um senhor
muito velho, moreno e vestido com uma túnica vermelha segurando um
rosário na mão. Kari assentiu discretamente a cabeça perante a
visão do Dalai Lama, título que resistira ao passar das eras na
conservação do Budismo.
– Irmãos do mundo inteiro. Venho
aqui hoje para deixar uma palavra de consolo para os corações
aflitos...
Seu gesto poderia ter sido de grande
valia, caso a conferência não tivesse sido invadida por uma turba
de adolescentes em skates voadores de segunda mão e armada com tacos
de beisebol, usados para atacá-lo ferozmente durante o discurso. No
meio da confusão e gritaria, apenas a câmera automática permaneceu
imóvel, transmitindo o festim de violência ao vivo para o mundo
inteiro.
Paralisada perante a cena terrível,
Kari gritava e tremia sem conseguir desgrudar os olhos da tela, e
teria continuado ali se Ymir não a arrastasse correndo para dentro
do veículo antes que o estrago fosse ainda maior. Agarrada ao
rosário, ela chorava e balbuciava enquanto ele tentava acalmá-la.
– Kari! Kari, olhe pra mim! Querida,
acalme-se... Eu estou aqui. – deixou que ela chorasse no peito dele o
quanto precisasse, admitindo com amargura que era tudo que podia fazer.
Não podia nem evitar que suas próprias lágrimas caíssem e seus ombros cedessem, acúmulo do inferno das últimas semanas. Ficaram ali, agarrados um ao outro feito náufragos em meio à tempestade.
Não podia nem evitar que suas próprias lágrimas caíssem e seus ombros cedessem, acúmulo do inferno das últimas semanas. Ficaram ali, agarrados um ao outro feito náufragos em meio à tempestade.
– O que vai ser de nós? O quê...? – o lamento de uma senhora que passava a esmo na rua, aos prantos,
traduzia bem a situação que o mundo se encontrava - e que tendia ao pior.
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